Cliente chega apressada ao balcão do Céu, companhia que oferece serviços de gerenciamento de vida pessoal em mais de setenta países. Bolsa enorme no ombro, pasta abarrotada, papéis e sanduíche na mão. O som dos saltos contra o piso chamou a atenção do segurança, "até que está bem conservada", pensou ele consigo. Outros clientes aguardam em fila e após cerca de quarenta e cinco minutos, em pé, chega sua vez.
Atendente: Bom dia, senhora, em que posso ajudá-la?
Cliente: Quero fazer a transferência da minha antiga personalidade para o meu momento atual.
Atendente: Ok. Qual o número do RG da senhora?
Cliente: Vinte e cinco, sete, três, três, quatrocentos e cinqüenta, barra xis.
Atendente: Estou vendo aqui no nosso sistema que a senhora já foi nossa cliente, mas agora está com outra operadora. Qual seria o motivo da transferência?
Cliente: Sinceramente, acredito que isso não seja da sua conta.
Atendente: Senhora, é nosso procedimento padrão registrar as razões desse tipo de solicitação. Não poderei estar lhe atendendo sem que isso seja realizado.
Cliente: Já fiz outras transferências antes e não tinha nada disso. Minhas razões são particulares.
Atendente: Desculpe, senhora, mas todas as transferências são feitas por razões particulares. Para prosseguir com o atendimento é preciso declarar o motivo específico do pedido.
Cliente: E o que vocês fazem com esse tipo de informação? É algo íntimo e que não é mesmo da conta de vocês.
Atendente: Tudo fica registrado no sistema, o que permite que a empresa possa conhecer o perfil dos nossos clientes e desenvolver soluções individualizadas às suas necessidades.
Cliente, batendo o pé e acendendo um cigarro: Soluções individualizadas, promoções! Quem me garante que isso não vai cair na internet?
Atendente: Minha senhora, não é permitido fumar aqui no atendimento ao cliente. A senhora pode sair e fumar ali fora.
Cliente: Olha aqui, fiquei esperando esse tempo todo e você ainda quer me interromper na minha vez? Você não tem como garantir que não vai ficar todo mundo sabendo, não é?
Um cliente da fila: Vá fumar lá fora, dona. A gente também quer ser atendido.
Cliente, apagando a bituca com o pé: Até parece que sou só eu que fumo por aqui. É minha vez, só saio quando terminar, diz para a fila impaciente. Que seja. Meu querido, quero porque agora estou com um bofe novo. Registre aí. Poderoso, chique, rico. E de noventa e seis a dois mil e um, quando eu saía com o Flávio Meira, tinha o tipo certo para namorar com esse homem. Tá anotando, aí? Eu era magra, não tinha fome porque amava. Era alegre. Lia muito Veríssimo. No JB, sabe? E era segura como a Susaninha.
Atendente: Que Susaninha, senhora?
Cliente: A Vieira, a Susana Vieira! Preciso voltar a ser aquela mulher hoje mesmo ou esse bofe me escapa. A fila é grande, meu querido. Serei eu mesma, só que a melhor eu para essa emergência. Mas que ninguém use minha personalidade de agora, viu moço? Vai que eu preciso. Quanto é mesmo?
Como eu já desconfiava muito boa. Ulm olhar acurado sobre a dicotomia social dessa sociedade viciada em portabolidade.
ResponderExcluirParabéns!