sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dia 2

Ela não queria ficar e o esperar. As pessoas já tinham ido. Na verdade queria sim, queria muito. Esperou tanto tempo e quando ele chegou, o sorriso iluminando o rosto, ainda com a camiseta molhada da chuva, já começou a lhe apressar. Era tanta felicidade, que mal cabia e ela só queria ir, já ter ido. Porque não sabia o que falar, queria colocar as sensações no lugar, o coração dentro do peito, ou da bolsa, do sapato, de qualquer lugar que não caísse sem ela notar.

Abobalhada, tentava responder o que ele lhe perguntava. (Onde estavam suas coisas?) Queria ir para onde pudesse gritar que já não sabia mais o que fazer de si. Que o quer. Apenas isso: quer muito. E não aceita não como resposta. Nem “tem, mas acabou”. Fez reserva até.

Acredite. Abra a agenda dela. Está ali o dia do único encontro. E o do desencontro. E o do atropelo. E aquele em que soube. Teriam sido marcados?

Conclui que é hora de rasgar tanta coisa que já foi. Que não diz mais nada de ninguém aqui. A ninguém.

Ele já está ali no carro lhe apressando de novo. Falando do resultado do jogo. E para não esquecer do guarda-chuva da Clarinha. Não, não esqueceu, está tudo aqui. Menos ela. Que está não sabe bem onde. De súbito, seu pensamento clareou: “Talvez em você”.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Verso e costas


Bento colocou uma placa na entrada do estúdio: “Não tatuo nome de mulher – exceção apenas para nomes de mãe e filhas”. Queria assim se ver livre de publicar a ilusão ou a inocência alheias. Ainda assim, a corrupção o espreitava. Não ligava se a moça estivesse presente. Se fosse bonita ou já estivesse morta. Não, não e não. É preciso um mínimo de ética nesse meio. Até que apareceu um fulano. Não queria nome de mulher. Foi justamente por isso que escolheu o estúdio, explicou. “Põe aí, em letra bonita: ‘Amor, só de mãe’ aqui nas costas”.



Era miúdo, careca e via-se que andara malhando para ganhar corpo. “Amor, só de mãe”... Lamentou não ter pensado naquela exceção. Quando criou a placa tinha acabado de tatuar um manezinho que lhe pedira para escrever “Francilangela” em estilo gótico nas costas. O cara curtia vampiros. Ou era emo. Bento não sabe a diferença. Queria impressionar a namorada que ia ser modelo em São Paulo.  Bento aposta que essa nunca mais voltou à terra. Pra não dizer que mudou de nome também.

Houve um outro cara que ele recusou. Queria tatuar “Eu sou muito foda”. Nas costas, claro. Porra, ele era tatuador, não publicitário. Não fazia anúncio de idiota. Quase mudou de ideia quando pensou que na verdade seria um ato altruísta, quase um serviço público. Seria como uma faixa indicando um caminho alternativo para o motorista: evite cara mala, tente o da esquerda.

Era tatuador, porra. Não terapeuta. Mas pelos negócios não podia deixar alguém sair de lá com aquilo. “Legal, né? Foi o Bento que fez”. Que merda, era só no que conseguia pensar com o sujeito ali. Agora, o cara é um fracassado que não pega ninguém e acha bonito contar pra todo mundo? Vai ver era algum tipo de experiência catártica. Cara, estava mesmo virando terapeuta, pensou.

Ligou o botão do “foda-se” e ia fazer o “Amor só de mãe”. Daí a consciência fez mais peso. “Olha cara, nas costas não faço, falou? Se quiser, vai no braço”. O cara ficou satisfeito, “Entendeu! No frio vai ser só andar com a manga dobrada pra galera ver”. Que mãe mereceria mais a tatuagem do que aquela?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Pedra


Fama era o objetivo de Marina na vida. Optou pelo jornalismo, caminho, no mínimo, controverso para esse fim. Entrevistaria celebridades, desvendaria escândalos, divulgaria atrocidades contra os direitos dos mais humildes. Seria um combo de Glória Maria com Caco Barcellos. Escreveria livros. E daria muitas entrevistas: Marília Gabriela, Jô, Faustão. Não fosse por um detalhe: ela só sabia falar por escrito.

Marina já tinha concedido entrevistas antes. Sabe, fonte ideal? Já a tinham procurado para falar sobre sua experiência como a única mulher vip na balada gay, sobre sua opinião quanto à proibição de caminhões na marginal Pinheiros e até sobre a queda do avião que não matou a Xuxa. Tudo por e-mail ou MSN.

Falar por escrito? Bem, não pode ser sério – pensa você, leitor. Mas é a absoluta realidade. Veja que o baque aconteceu em uma entrevista de emprego, quando o entrevistador saiu do roteiro estabelecido pela convenção social: nada de perguntar sobre quais seriam suas expectativas na nova empresa, de parecer ter lido seu currículo, ou de lhe contar o que afinal fazia um jornalista na área de culinária corporativa.

Por que você continua no jornalismo? Cite uma matéria de nossa revista que você publicaria em forma de pirâmide. Por que você saiu de seu antepenúltimo emprego? Sócrates: quem, o quê, como, onde e, principalmente, por quê? Você ainda mora com sua mãe?

Marina queria protestar: era permitido sair do combinado apenas em entrevista com políticos pegos em áudio e vídeo cometendo flagrante delito, jamais esse último recurso deveria ser admitido em uma questão tão protocolar quanto uma entrevista de emprego. Será que aquela caneta azul ali no canto superior esquerdo da estante, diante do manual de redação, não seria uma microcâmera?

O olhar dos recrutadores era tranqüilo. Marina suava. Analisou que eles só esperavam que ela lhes desse a senha do capitão Nascimento (pede pra sair!). Resistiu. Mais ou menos. Não conseguiu elaborar a tempo suas respostas. Foi resmungando pelo caminho que aquela entrevista devia ser feita por e-mail. No elevador, ainda sob forte emoção, resolveu denunciar via twitter, mas saiu apenas um clichê: puta falta de sacanagem. Foi sua última entrevista ao vivo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Enrolada

Gisele não usa meias brancas. Nem sapatos pretos, exceto se forem de verniz. Lustrosos como maçã do amor. As vendedoras de calçados já viram muito, mas não tudo. E isso, meias mais sapatos, as chocavam no mais íntimo do ser.

Era inverno, então ela abusava das meias colegiais, coloridas, sempre. Por fora, era o signo da executiva. Calça cinza. Terninho bem cortado. Pasta preta. Mochila com notebook. All-star branco no metrô. Sapatos toc-toc no escritório.

Os sapatos nunca pretos eram uma excentricidade que passava desapercebida pela corporação. Até porque ela os compensava com modelos azuis, prata, chumbo, cor de whisky, de caramelo, beijinho e coco queimado.

Mas as meias, se reveladas, contariam outra história. A cor era de um laranja hare krishna. Indiano também era o padrão da estampa, com azul, marrom, tons de verde. Nada a dever para a figurinista de Caminho das Índias. Na prática, ela vive uma novela que já terminou.

Gisele argumentaria que foi ela quem lançou tendência, pois comprou o par antes de Glória Peres redescobrir as Índias. Na verdade, adquiriu as peças em uma viagem à tradicional Campos do Jordão. Pior, é apegada ao passado.

Ou é hippie. As meias denunciam que ela medita nas horas vagas. Lê livros de sexo tântrico. Pode, por Deus, até praticá-lo! Se louva a Krishna, tem tendência a torturar sua futura nora durante o preparo do chai. Se não for nada disso, então, é uma imatura, se recusa a crescer, pois não está a imitar aquela garota de óculos do Scooby-Doo?

A mãe de seu futuro namorado anotará as meias que ela usar. Ficará atenta toda vez que Gisele cruzar as pernas para, na subida inevitável do tecido da calça, flagrar o delito futuro. Sogra brasileira é versada em najas pseudonacionais.

Todo o seu mundo acabaria. Por apenas duas meias. Meias pacíficas, apolíticas – o Buda também vestia laranja. Meia sem dinheiro. Sem chaminé. Estaria acabada se descobrissem suas meias. Ao mesmo tempo, não podia livrar-se delas. Eis o que pode se tornar um dilema shakesperiano na vida de uma mulher de vinte e pouco anos.
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