segunda-feira, 28 de junho de 2010

Premeditação

Ela levou horas para escolher o visual certo para hoje à noite. Checou a maquiagem no espelho do hall. Voltou à cozinha, abriu o armário e tomou duas pílulas azuis com coca-cola. Retocou o batom, arrumou o cabelo e estava pronta para sair.

Sérgio com certeza iria. Ela havia decidido que daquela noite não passaria. Conseguiria conversar algo conexo. Por isso as duas pílulas azuis. Não era viagra. Se fossem postas lado a lado, seriam tão diferentes quanto um óvulo e um espermatozóide. A dela era enorme, a deles pequenina. Eram pílulas de passion fruit, cujo nome destilado de ironia é maracujina.

O coração batia rápido só de pensar no encontro. Quase estourava o peito. As pernas tremiam à iminência dos passos porta afora. Ela já estava ligada demais. Tinha medo de falhar. De novo. Porém, havia riscos. Sabia que se errasse na dose poderia dormir em plena mesa do bar e acordar com os olhos borrados de vergonha e rímel.

Por um segundo pensou que seria divertido trocar as pílulas azuis do irmão pelas dela, desatento que era, ele nem notaria. Mas não podia brincar assim. Simplesmente porque não tinha moral nenhuma.

Estava novamente à porta quando decidiu voltar. Abriu o bolso invisível da bolsa e lá muquiou a cartela de comprimidos, junto com o RG e uma folha de cheque. Foi então que abriu um sorriso, inesperado até para si própria, e pegou um pacote de preservativos com sabor de morango. Calma, sim, morta não.

sábado, 12 de junho de 2010

Movimento pelo ludismo no amor



Chega de e-mails e torpedos. Qualquer meio de comunicação surgido após a invenção do fogo deve ser sumariamente descartado na área afetiva. O que inclui das cartas de amor aos sinais de fumaça, definitivamente.

Cartas de amor, aliás, deveriam ser sumariamente controladas. Só deveriam ser escritas à mão. E à tinta. Branquinho nem pensar (o horror, o horror!), nisso é preciso dar razão à dona Maricota, lá da sua 5ª série.

Não é porque as cartas de amor sejam em si ridículas, nem os e-mails, ou os torpedos. O excesso de tecnologia é que não tem facilitado em nada esse aspecto da nossa vida.

Imagine você sendo Balzac. Com todo seu talento escreve à condessa X. A carta leva onze dias para chegar, isso pra não mencionar o tempo de escrita a bico de pena. Você, Balzac, engenheiro do amor, represou o sentimento para que ele não virasse uma enxurrada de palavras desconexas que afogasse sua amada. Conseguiu gerar energia suficiente para aquecer um coração a onze dias de distância por correio montado.

O problema é que o mundo está cheio de mestres de obras do amor. Gente que não tem condição. Daí constroem-se, à velocidade de torpedos, puxadinhos sob os morros, que tremem ao menor vento e não resistem às chuvas de verão.

Pedreiro amigo, admire a cachoeira. Leve sua amada para apreciar a natureza. Lá, diante das cataratas, fale tudo. Gagueje. Dê voltas, se preciso. Atire as máquinas longe, para sempre. Dê flores silvestres. Use as mãos! Castelos inteiros podem ser erguidos com ferramentas vocais e olho no olho.  E não haverá problemas de delay na resposta ou risco de a baleia encalhar no twitter porque tudo será, de fato, em tempo real.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Transformação


Aos 18 anos nem esperou a convocação do Tio Sam e se alistou no Exército. Cumpriu dois anos no Afeganistão. Não voltou para casa. Ainda não. Pegou um navio para correr o mundo, desembarcou por aqui. Numa sexta-feira de julho, ele estava no trem a caminho da Luz, em São Paulo.

Tinha os olhos muito verdes e o cabelo loiro ainda no estilo soldado, meio oculto sob uma touca, sua branquelice chamava a atenção. Tanto quanto o agasalho camuflado e a mochila de guerra, enorme até mesmo para os padrões daquela linha do fim do mundo ao Centro Antigo.  Ia em pé. Firme no chacoalha chacoalha da velha lataria.

Sentada em um dos bancos, viajava uma mulher morena de seus trinta anos. No frio paulistano, protegia-se com um casaco preto, blusa cinza e cachecol. Comum. Abriu a bolsa. Espelhinho em punho. Sacou a base. Líquida, rapidamente foi absorvida pela pele.

A atenção do soldado, então, desviou-se da paisagem (quilômetros de trilhos e prédios pichados à esquerda e à direita) para ela. O blush foi aplicado com leves toques do pincel. Um delicado tom róseo tornou-se perceptível nas maçãs do rosto. No soldado, a sobrancelha direita erguida sugeria alguma movimentação interior.

Em seguida um pequeno bastão, semelhante a um batom, foi aplicado nas pálpebras superiores. O lápis definiu um traço sutil junto aos cílios, para em seguida ser sublinhado por mais um pincel, desta vez com sombra discretamente colorida. Por fim o rímel, em várias passadas, ergueu os cílios.

Ele nem piscava. Não notou que assim destoava ainda mais dos outros passageiros, mas não teria se importado mesmo que percebesse. Ela renascia ali. Era uma mulher totalmente nova, insuspeita no ambiente semi-escuro. Bela. Estava fascinado, jamais havia assistido a alguém se produzindo.

O banco entre o soldado e a mulher vagou. Como ninguém se manifestasse, ele o ocupou. Ajeitou a touca. Abriu a mochila. Pegou um estojinho azul claro. Continha maquiagem. Tinha prestado atenção, com certeza agora conseguiria fazer sozinho.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Mudança

Devia ir embora de Parati, mas não tenho vontade. Por que não ficar? Fiquei. Cidade linda. Uns caiçaras musculosos de pé no chão. Tem um povo bonito chegando o tempo todo. Uns italianos bronzeados com a barba por fazer, tipo o melhor do mau caminho. Jesus usa Gilette Mach 3. Mas se eles forem mesmo o mau caminho, ok, monto minha barraquinha na beira da estrada.


Encontrei uma boa conexão wireless. Só consegui do lado de fora da pousada, é inverno e já é quase meia-noite. Sentei na namoradeira sob a jabuticabeira.


“Oi, Alice,


Tudo bom?


Por aqui não poderia estar melhor. Não volto. Não insista.


Escrevo para colocar você a par das miudezas do lar. Parece até que eu sabia, deixei tudo no jeito. Contas pagas na gaveta abaixo, entre os ossos da vovó e o tio Alfredo. Às vezes eu ainda me assusto. Mas é simples, não tem erro.


Beijos daquela que será sempre sua”


Vento sudoeste trazendo um friozinho. Esse tempo não se acha fora daqui. Úmido e escuro como sempre quis. Não resisti e respirei o mais fundo que pude. Não tinha medo de engasgar. No que eu abri a boca para aspirar o ar, algo viscoso desceu goela abaixo. É questão de acostumar, né? Aqui meleca é coisa normal.

* Esta crônica foi escrita durante a oficina de crônicas Tanta Ternura, ministrada pelo escritor Fabrício Carpinejar. No exercício deveríamos compor uma redação a patir de sete frases pré-determinadas.  Quem adivinhar leva um doce ;~)
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