sexta-feira, 27 de maio de 2011

Eu vi a aura do Rio

Aquela calça com os fundilhos no joelho, que ainda é moda, nunca me enganou. Ô coisa ridícula. Olho para as pessoas e me pergunto se ninguém vai gritar que o rei está nu. Não grito, sou velha demais pro meu aviso colar. Mas sei que devo conceder o benefício da dúvida, vez ou outra, por isso me preparei e fui conhecer o Rio de Janeiro.

Como todo mundo neste país, tenho mais horas de Rio na memória do que qualquer outro lugar. Sabe aquele roteiro: Cristo, Lagoa, Ipanema, Sambódromo? De tanto que vi, gastou.  

Outras centenas de arquivos ajudaram nisso: tiroteios na Linha Vermelha, na Linha Amarela, arrastão na orla de Copacabana e aquela lengalenga de chamar favela de comunidade.

Fui conhecer os monumentos históricos, o casarão real no Jardim Botânico, a casa da condessa de Barral, amante de Dom Pedro II, o Palácio do Catete, a Biblioteca Nacional. E a noite da Lapa. Queria me jogar. De asa delta, da Pedra Bonita.

Pense numa viagem de erros. Levei uma dezena de horas no trânsito pra chegar à terra prometida. O museu do Catete só abriria depois das duas da tarde – coisa pra desafiar a escassa paciência paulistana. Outros nem isso. O centro deserto, nenhuma loja aberta e nem era meio-dia quando chegamos naquele sábado. Entre as ruelas, os prédios antigos calados e, adiante, a Candelária em reformas. Só deu pra imaginar como tudo aquilo seria.

Daí cansei de ser turista. Sou brasileira, sou de casa. Fui à praia na Barra mesmo. Também fui ao Posto 9, em Ipanema, e vi camelôs trajados de árabes vendendo quibes e esfihas abertas. Sucesso. Vi, da Pedra do Arpoador, o sol se pôr. Mas gostei mais do Aterro do Flamengo: eles simplesmente fecham duas pistas de uma avenida imensa e emendam asfalto, parque e praia. Criançada brincando, gente jogando vôlei, pedalando, lendo à sombra, e até tomando banho de mar.

Comi feijão preto todo dia, graças à Ana. E jantei pão com presunto e queijo, autêntico de avó. E comida mexicana em um quiosque na praia, na Ilha do Governador. Ficou só faltando ir a um barzinho super bem cotado no festival Comida di Buteco, fechado em respeito à Sexta-Feira Santa. E conferi as relíquias de Bono e Madonna no Hollywood Cafe, que nem estava na minha programação, ao som de um rock de praia.

Vi o Rio dos meus amigos. Descobri um Rio família como uma cidade do interior, que jamais imaginei. As pessoas ali não sucumbem à metrópole. Como é, não sei, mas voltei meio carioca também.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

End's tonight

O ano passado bateu todos os recordes de casamento. Pelo menos na minha tabela: seis casais de amigos resolveram dizer o “sim”. Desconfiei, devia ser um sinal do fim dos tempos. A moça chamava o rapaz e disparava: “não vou pro juízo final solteira, meu amor!”. Fiquei sem entender, afinal os maias marcaram o evento, com bastante antecedência, para 21 de dezembro de 2012.  Deu vontade de alertar os noivos e noivas vítimas de possível chantagem emocional: ainda restava uma janela de quase um ano a se aproveitar. Mas aí descobri que o fechamento do planeta foi antecipado pra amanhã. Isso mesmo, sábado, 21 de maio.

O anúncio foi feito por um movimento cristão norte-americano. Concordo com o leitor que lembrar que eles fazem esse anúncio quase todo o ano, mas, convenhamos, uma hora eles podem acertar e vai que é amanhã? A tal “Family Radio Worldwide” está empenhada em espalhar a notícia por todo mundo.

A expectativa da associação é que, neste sábado, os escolhidos ascendam aos céus e os renegados pela benção divina fiquem por aqui curtindo um período de tormento, até o fim dos tempos. O fim do mundo ter sido antecipado é bem típico de Deus, querendo prender todos os jornalistas na redação.

O mundo acaba, mas a imprensa segue: não vai ter jornal encalhado nas bancas. Todos, com depoimentos de mil especialistas, dirão como nos preparar para esse momento único da humanidade. Os portais de internet estarão à toda com a cobertura em tempo real, enquanto as rádios dirão as rotas menos congestionadas para tocar a mão direita de Deus.

Pena que eu só soube hoje do fim do mundo. À noite já tenho compromisso: bar com os amigos. Gastarei, então, minha última noite na balada. Mas se tempo eu ainda tivesse, iria apelar à pessoa amada: “Vamos ficar só essa noite e depois vemos no que vai dar”.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Uma noiva para Gamal



A solteirice incomoda muito. Aos outros, principalmente. E estes, por sua vez, nos cutucam até tomarmos alguma atitude. Jamais aceitarão que a pessoa se acostume com este singular estado civil. Gamal foi vítima dessas boas intenções.
 – Não, não pode! Onde já se viu homem bonito, trabalhador e de boa família sem mulher? – Quem dava voz ao consciente coletivo era o cunhado de Gamal, que alimentava uma barriga de homem bem-casado.
Com isso, mãe e irmãs se sentiam no direito de cobrar também. Não queriam um homem encalhado em casa. Nenhuma boa família da Índia permitiria isso. Se ficava sozinho, era porque tinha voltado ocidentalizado. Em língua corrente: viado. 
– Já que você fica tanto tempo na internet, por que não procura lá uma mulher? Em um site de relacionamento? No Facebook? Vi uma pesquisa na tv que dizia que são 48% maiores as chances de se encontrar alguém assim do que pessoalmente.
 Mal não podia haver. E era melhor do que deixar o pai, até ali de fora da polêmica, procurar entre as boas famílias da Índia uma mulher para ele. 
 Boas mulheres sim, mas não pra ele Gamal, que veio sim um pouco ocidentalizado da América, onde fez faculdade. Mas não como temiam. Voltou querendo mulher loira, de peitão, original ou de silicone, não fazia preconceito.
 Almoçava no escritório para poder ficar nas salas de bate-papo e nas redes sociais. Chegou até bloquear algumas candidatas mais afoitas. Sexo nos primeiros toques? Americanizada sim, mas sem perder a pureza. E não só de coração. 
 Demorou, mas encontrou. O Facebook tinha sido uma ótima ideia, iria agradecer ao cunhado. Temente à Shiva, loira e com peitão. A família estranhou um pouco os cabelos tingidos. A moça era de poucas palavras e nenhuma família, todos mortos em um acidente no Ganges. Anusha pagou o próprio dote. E a sogra achou um lucro ela saber fazer o tchai.  
 Na primeira noite de casados, não consumaram a união devido ao cansaço após tanta celebração. Depois ela disse estar menstruada, depois foi enxaqueca, depois passou a seduzi-lo com jantares sempre regados à bebida farta. Gamal logo cochilava e só iria fazer nova tentativa na noite seguinte, quando era novamente traído pelo desejo de comer.
Quando a barriga de homem bem-casado apareceu, tornou-se o orgulho da família. Ninguém iria imaginar que passava fome de mulher. 
– Exija seus direitos de marido, Gamal! – Ouviu de um amigo quando um dia desabafou. 
Tentou, insistiu, mas Anusha escorregava sempre. Ou ele adormecia, ou vinha visita, ou ela estava naqueles dias, ou qualquer outra coisa. Ao cabo do terceiro mês, não a tinha visto toda nua. Só umas partes: o pé na sandália de tiras, o tornozelo quando a barra da saia levantava centímetro e meio ao subir a escada, os braços e o colo no decote. Era uma loucura para Gamal, que viveu tanto tempo sem dar por falta de mulher.
O amigo confidente contou para o cunhado de Gamal, que consultou o sacerdote e este fez saber a outros homens e todos concordaram que aquilo não estava direito.
Eles exigiram de Anusha uma explicação. Ela se fez de ofendida, não quis falar com ninguém e se trancou no quarto. Pressionaram. Gritavam que iriam arrancá-la de lá e obrigá-la a servir o marido de qualquer jeito. 
Arrombaram a porta, mas Anusha conseguiu sair pela janela. Deitou a correr pelo bairro e toda gente atrás. Gamal, perdido no meio do povo, ia junto. Perdida ela também, acabou por encurralar a si própria em um beco. Até mulheres já faziam parte da turba agora. Uns batiam, outros tentavam arrancar-lhe as roupas. Mal se ouvia seus gritos sufocados de protesto. O marido temia pela esposa e já se acusava e se arrependia por aquilo tudo. 
 Quase nua, estava visível qual era o problema da mulher: o volume na calcinha, o gogó se destacando, uns pelos muito grossos por todo o corpo. Era homem a Anusha. Não fosse a polícia chegar, ele viraria mulher na marra, de tanta pancada. Gamal é que não sabia mais o que era, onde estava. Fechou no mesmo dia o perfil do Facebook e fez as malas. Iria se jogar na América, garantiu. Queria agora de todo jeito a sua loira com peitão, dela ou de silicone, não fazia preconceito desde que fosse mulher, isso sim, original de fábrica.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A primeira confissão


Que pecado contaria ao padre? – Marina se perguntou a tarde inteira e, já noite, ainda não sabia. A primeira comunhão era uma coisa complicada: primeiro tinha sido batizada, depois fez o cursinho e agora a confissão, o último desafio antes de receber a hóstia consagrada. 

A catequista disse para a turma contar a verdade na confissão com o padre Ercílio. Marina sabia que aquilo era um truque. Se dissesse a verdade, o padre daria o mesmo sorriso pequeno que o pai dela fazia antes de dar aqueles castigos realmente grandes e prepararia com capricho a penitência. O medo dela era ter que rezar até dar câimbra. E se ele a mandasse ajoelhar no feijão? 

Nem o padre, nem a catequista e nem a mãe iriam acreditar nela. Dizer que não tinha pecado, onde já se viu? “Todo mundo tem pecado, quem não tem mente e isso é muito grave porque daí são dois pecados: a arrogância e a mentira”, a tia tinha falado no catecismo. 

O livro do curso estava aberto sobre a cama na página dos dez mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas, ok; não usar o nome de Deus em vão, também; guardar domingos e dias de festa, lógico que sim; honrar pai e mãe – ela obedecia porque senão já viu, né?; só levantava falso testemunho em caso de legítima defesa, como agora; cobiçava as coisas? Se não sabia o que era, não podia ser culpada. 

Pegou um banquinho e posicionou do lado da estante. Ainda teve que subir no móvel para conseguir alcançar o dicionário da avó. Cobiçar era querer algo que era dos outros, dizia lá. Mas só sentia isso um pouquinho, não passava do Natal, quando o pai lhe comprava os presentes. Roubar não fazia. O homem do saco leva criança que rouba pra trabalhar pra ele. Ou ia pra Febem, já tinha visto na tevê.  

O último pecado só podia ser coisa de adulto: castidade. Palavra que lembrava castiçal, coisa de vó, sabe? Se era algo parecido com castiçal, então, tinha a ver com vela e com fogo, e o pai a proibiu de mexer com fogo. Podia ter olhado de novo no dicionário, mas eram tantas folhas, as letras pequenininhas e ela estava tão cansada que dormiu antes mesmo de pensar em tudo isso. 

Sonhou que o padre confiscava seu diário. “Olha, Marina! Está tudo aqui! Não tem pecado, ora essa! Vá rezar vinte ave maria e trinta pai nosso, já! E que Deus te perdoe!”, dizia ele enorme para uma Marina encolhida atrás do terceiro banco da igreja. 

A menina acordou certa de que devia entregar ao padre todos os seus segredos. Com certeza foi Deus que lhe falou em sonhos, pelo menos a mãe e a catequista diziam que ele fazia isso toda hora em resposta às orações.  Ela nem orou, mas como estava na maior atribulação achou que Ele, muito sábio, resolveu ajudar mesmo assim. 

A fila da confissão tinha todo mundo de todas as turmas do catecismo. A primeira a entrar foi a Débora, uma ruivinha, que saiu de lá rapidinho e chorando. Vai saber o quê ela tinha feito, pensava Marina. Desconfiou, lá no fundo, que ela também achava que não tinha pecado nenhum. Quando chegou a sua vez, sentou na cadeira à frente do padre – lá na igreja do Jardim Atalaia não tinha dessas coisas chiques de casinha pra confessar, era olho no olho, mesmo para as crianças – e falou, sem nem respirar: 

- Padre, tá tudo aqui. O senhor lê rapidinho, por favor, e não conta nada pra minha mãe. 

Marina deu ao padre Ercílio a chave para abrir o diário lilás. Ele ficou olhando pra aquilo algum tempo, depois abriu, deu umas folhadas. A menina pensou que ele não conseguiria entender sua letra apertada. 

- Padre, a minha letra é feia mesmo, mas eu prometo não faltar mais na aula de caligrafia. Se quiser, eu leio pro senhor. 

O padre agradeceu, mas continuou lendo em silêncio por mais alguns minutos. Depois fez uma cara que ela nunca viu nele e mandou Marina rezar três pai nosso e duas ave maria. Foi a menor penitência da turma.
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