sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

E é hora do Crônicas Retrô




Eu não me incomodaria de ter um ano novo meio parecido com esse que se vai. Sei que a maioria quer 2011 entre logo no bolso e que carregue tudo possível junto. Mas, apesar das turbulências econômicas, pessoais inclusive, eu aceitaria de boa uma outra rodada dos pontos fortes desse ano: os novos amigos (pessoal do B_arco, dos cursos da Terracota editora, etc.), as férias do meio de ano (dobradinha entre Paraty/RJ e o Ceará), eu ter tido coragem para voltar à facul, as aulas maravilhosas do querido Marcelino Freire e tanta coisa ... Fui meio ausente do “Crônicas das 12”, mas andei colaborando com o pessoal do “Vida daSete Chaves, e descobri, vejam só, que tenho fôlego para narrativas mais longas.

Em 2012 a ideia é dar uma repaginada no layout do blog – que sim, vai continuar muito azul, mas com mais destaque para as fotos – e criar um outro blog, este sobre livros, veremos. Bem, não prometo datas porque, e isso é outra descoberta de 2011, o importante é começar, mesmo que seja uma dieta uma semana antes do Natal, :P

 "Resoluções? Eu? O que você está sugerindo? Que eu preciso mudar?? Bem, amigo, no que me diz respeito, eu sou perfeito do jeito que eu estou!"

Assim, no apagar das luzes, pensei que seria bacana fazer uma retrospectiva dos meus melhores textos neste ano – pelo menos foram os que eu mais gostei de ter escrito. Quem não viu, veja agora no “Crônicas Retrô”. E claro, que seu ano seja abençoado e que você tenha força e saúde para conquistar o que 2012 tiver de melhor a oferecer.








quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O meu bebê número 1


Há pouco mais de uma semana a Terra recebia o habitante de número 7 bilhões. Outros milhares de bebês nasceram, mas uma menina das Filipinas, Danica, foi quem recebeu a honraria. Enquanto isso, do outro lado mundo, na minha oficina de escrita criativa, nascia o meu primeiro bebê. Um menino. Resolvi me conceder uns dias de resguardo, curtir os primeiros dias da criança antes de vir contar aqui.
Metáforas a parte, nasceu sim o meu primeiro conto publicado no jornal Conto. Quem me segue pelo blog, sabe que eu sou uma mulher da crônica, mas até que dei conta do serviço. A publicação foi uma parceria entre os alunos, com a coordenação do escritor Marcelino Freire. Confira a íntegra abaixo.
Ah, se você quer saber sobre os outros bebês, vale pegar uma edição gratuita do jornal durante a Balada Literária, evento que acontece em São Paulo, de 16 e a 20 de novembro. Olhe, até mano Caetano Veloso irá comparecer ;)


Bebê sob encomenda



Aline Viana

- “Alameda Jaú, 1.567, Jardins - São Paulo”. De quem é esse endereço, Judite?
- É da madrinha do Pedro Arthur, sim, senhora. Fiquei de mandar uma encomenda importante pra ela. A senhora consegue achar o CEP aí no computador?
- Claro, minha filha. Já tá aqui ó: 01420-002. Agora volta pra casa, que deixar criança sozinha, mesmo dormindo, é um perigo!
- Já vou então, dona Rafaela, muito agradecida.
Judite voltou pra casa a pé mesmo. Sabia que o filho ainda dormiria mais uma ou duas horas porque havia acabado de mamar. Era só meia hora a pé, nem compensava esperar o ônibus, que demorava uns vinte minutos pra passar e a deixava onde o asfalto acabava. Dali ainda tinha chão até em casa.
Judite não sabia como fazer, mas ser mãe havia sido desse jeito o tempo todo. Arrumou a trouxa do bebê, colocou os dois últimos pacotes de fralda por precaução, roupinha de frio, lá não devia estar calor como naquele fim de mundo da Bahia, coberta, os bichinhos que ele mais gostava, leite em pó, mamadeira. Devia pôr tudo numa caixa ou numa mala? Melhor uma mochila. Precisava passar papel pardo em volta? Por via das dúvidas, vestiu Pedro com um macacãozinho bege, de ursinho. E seguiu para a agência dos Correios com o filho.
- Quanto tempo leva pra um pacote chegar em São Paulo, moça?
- Uns dois dias, senhora. Se a senhora pagar um pouco mais, a gente garante que chega amanhã de manhã.
Comprou vários selos e espalhou por todo lado na mochila. Deu um último beijo em Pedro Arthur e o colocou com cuidado no armário do malote.
Ela não podia ficar com o menino, não agora que o Bento foi trabalhar em obra no Recife com a biscate da Elaine. Um dia, quando chorava na igreja, depois da missa, o padre Jonas veio conversar com ela. E falou de mulheres que não podiam ter filhos, mas que aceitariam qualquer criança que Deus lhes enviasse. Pediu para ela pensar com calma, que Deus falaria em oração.
Primeiro sentiu medo, depois raiva, e tristeza e tudo de novo. Fora de ordem. O filho dela não era brinquedo, não podia dar assim pros outros. Queria saber quem era, o que fazia, se era gente de bem.
Tarsila ligou um dia na casa da patroa, procurando por Judite. Foi a primeira vez que alguém ligou no emprego procurando por ela. A mulher contou que havia conseguido o número com o padre Jonas. Judite lhe deu o número do celular, que ela podia atender depois do trabalho.
Conversaram várias vezes. A paulista lhe contou que não conseguia pegar barriga. Os médicos não sabiam o porquê. Ia toda noite na igreja da Consolação pedir por um milagre. Até que o padre de lá disse que a igreja podia ajudar. Se ela aceitasse a criança de alguém podia dar-se um jeito. Dias depois, o padre Jonas ligou e contou a história dela, Judite.
A mulher lhe pareceu séria, mas Judite também quis falar com o marido. Era um homem simples, que lhe passou confiança. Combinaram de só mandar o bebê depois de seis meses, para ele poder mamar um pouquinho que fosse. Ela devia ligar para avisar quando pudesse levar a criança. O casal combinou de pagar a passagem de ônibus, já que ela não queria nem saber de entrar em avião. Faltava coragem para prolongar a despedida por dois dias inteiros, num ônibus, pra depois voltar sem ele. Ia mandar o menino pelos Correios. Eles sempre entregavam as contas no prazo, não iam deixar nada acontecer ao filho dela.
 Os Correios entraram em greve naquele mesmo dia. Ninguém ia avisar os clientes, pra não tirar a força do movimento. Se a população tivesse prejuízo, ia cobrar do governo uma solução junto com eles.
Marcos recolheu as encomendas lá pelas nove da noite. Entre caixas e pacotes, deu com o Pedro Arthur. No macacão, o endereço da dona Tarsila, colado com etiqueta no peito, nas costas, na mochilinha. Não tinha nome do remetente. Até onde se sabia não era proibido mandar crianças pelos Correios. Como o clima já era de greve, os colegas decidiram em assembleia que era o Marcos quem levaria o bebê para São Paulo. Ali não podiam deixar, não sabiam quem era a mãe, não dava pra devolver. A encomenda estava paga. Ele ia junto com os outros pedidos marcados como perecíveis, de trem, já que as entregas de avião continuariam suspensas.
Ele nunca tinha cuidado de bebê nenhum. Argumentou que não sabia trocar fralda. Uma colega, que ganhara bebê há pouco, lhe ensinou como fazer, já deixando o Pedro pronto para a viagem. Ensinou a dar de mamar, dar banho, por pra dormir.
Quando deu por si,  já alguém havia buscado em sua casa uma sacola com as roupas pra  jornada. Avisaram a mãe que em duas semanas ele estaria de volta e o chefe se comprometeu a visitá-la.
O trem passou quase meia-noite. Marcos colocou a mochila de Pedro Arthur nas costas e entrou no primeiro vagão do trem, logo atrás da cabine. Era o único que tinha bancos, ainda que velhos, estofados em couro vermelho e mais ou menos confortáveis. Os outros vagões eram para transporte de carga – os remédios, os alimentos e o que mais o gerente da agência achou que devia ser enviado com urgência estavam lá.
O maquinista da noite contou que em mais de vinte anos de linha de ferro nunca viu uma encomenda daquelas. Ele explicou que, em uma viagem perfeita, levariam cinco dias para chegar. E isso porque a companhia abandonou o esquema de transferências por ter cada vez menos cargas – os motoristas e os empresários preferiam se arrebentar na estrada, lamentou. O menino, talvez tão assustado quanto Marcos, puxou os cachos do cabelo do carteiro, que o usava comprido por vaidade, lhe arrancando um grito.
Logo na primeira noite, a criança acordou várias vezes. Talvez estranhasse o sacolejo do trem, a poeira que cobria o ar, ou simplesmente para protestar por ter se sujado. Marcos acordava meio tonto, sem entender que a choradeira era com ele e com isso despertava o motorista do dia, que precisava dormir até cedo.
A primeira parada foi no meio do nada, uma cidadezinha que era só vento e barro vermelho. Eles iriam passar por mais mil outras pelo caminho antes de chegar. Homens em mangas de camisa em busca de cartas e encomendas se aglomeravam na estação. Enquanto o trem chegasse lá, pra eles não tinha greve. E saíam satisfeitos apenas aqueles que pediram remédios.  Os outros continuavam sem notícias, sem pertences.
No intervalo de uma hora aprendeu a banhar a criança na pia do banheiro. No vagão de passageiros, o banheiro estava entupido há anos. Queria ter conseguido limpar pelo menos o principal como dizia a mãe, em código para suvaco, pinto e bunda, mas com quem ficaria o menino? Não podia correr o risco de perder uma entrega daquelas. Pelo menos conseguiu mijar. E molhar o cabelo e lavar o rosto. Comprou duas garrafas de água para a criança. Para ele uma coca-cola e três coxinhas bastavam. Beberia de novo quando o trem voltasse a parar. Se enchesse a barriga d’água, não teria onde se aliviar.
Deitou o menino no banco, mas ele não quis dormir. Ameaçou chorar. Sentou a criança, que a custo tentava se equilibrar. Lembrou dos bonecos e lhes deu. Na linguagem lá dos bebês, Pedro Arthur agradeceu e chacoalhou o elefantinho azul, tirando cada instante uma melodia diferente do brinquedo. Só pegou no sono quando o sol caiu e o trem já parava em outra estação, ainda na Bahia. E foi aquele dorme-acorda como da outra vez.
O trem quebrou quase chegando a Belo Horizonte, ainda a dois dias de São Paulo. Sorte que da véspera sobrou bolacha, um pouco de suco e toddynho para o menino. O conserto chegaria em algumas horas.  Alguma bitola tinha estourado, ou era o carvão que estava verde, o maquinista não sabia direito. Marcos esticou um tapete que havia achado atrás de um dos bancos e colocou lá o Pedro com os brinquedos. O menino parecia não se incomodar com o tempo parado, os mosquitos, o mormaço. Ria e ria ao ver o elefantinho cair ou a bola rolar. Esticava as mãozinhas para que a bola voltasse sozinha e chorava se ninguém a jogasse de volta pra ele.
O mecânico chegou da capital numa picape. Mexeu por horas e no final da noite conseguiu pôr a máquina soltando fumaça. Pelo menos o mecânico havia trazido um pouco mais de comida, que dividiu com os três homens e a criança. Sem geladeira, não adiantava guardar muito.
Mais dois dias se seguiram nessa toada até que o céu cinza e o cheiro de pneu queimado estivesse por toda parte. Pedro já conseguia sentar sozinho e tentava pegar os bonecos que ficavam longe. E fazia festa só de ver o Marcos. E dormia a noite toda – coisa que da primeira vez até assustou o carteiro, que achou que ele tivesse morrido.
- Parece que nem lembra de casa, refletiu o carteiro.
Dois colegas foram buscá-los na estação da Luz. O mais alto, Marcelo, achou a história toda tão da hora, que queria a todo custo levá-los na TV Cultura, que ficava ali perto, para contarem pros repórteres. Iriam ficar famosos. A ideia só podia vir mesmo de um moleque sem noção, um fura-greve, pensou o baiano. Forçou-se a agradecer, mas disse que ele e o menino precisavam de um banho. De verdade, com chuveiro e água quente. E comida e leite forte, que leite em pó não era alimento pra criança. Encheram a van com as outras encomendas e foram para o centro de triagem da rua Pamplona, perto da avenida Paulista. Foi um alívio tomar banho completo, de chuveiro, de porta fechada, sem temer que alguém lhe roubasse o bebê. Dormiu na casa do caseiro do prédio onde ficava a agência. O menino no sofá e ele num colchão no chão.
- Dona Tarsila, tem um moço aqui na portaria dizendo que tem uma encomenda pra senhora. Diz que a senhora mesma é quem tem que assinar lá.
- Mas eu não encomendei nada...
Na portaria, o Marcos com o filho dela nos braços. O menino gordinho, de macacãozinho verde e touquinha listrada de golfinho, brincava com o cabelo do carteiro.


segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Que se dane o que vão dizer

Essa crônica foi publicada originalmente no Vida a Sete Chaves, mas resolvi compartilhar com os leitores do Crônicas também. Espero que se gostem!




Hospital público. Sabe como é, né doutor? Demora pra ter vaga. Cheguei todo arrebentado e fiquei mais de dia na fila. Depois mais um dia – ou foram dois? – na recepção aguardando minha vez. Estava tão grogue de dor que agora num sei se foram um ou dois dias. E tinha um bagulho de senha, tá ligado? Parecendo banco, moderno! Só que modernidade pra hospital pro povo é só pra dar enrolar, cara. O número não muda. E quando muda, não muda pro seu. Fiquei lá tanto tempo que até consegui sentar!

O que eu tinha? Levei um tiro de raspão e caí da moto lá no Pelourinho. Tinha que entregar umas encomendas lá no Centro. Senti a bala, desviei, mas ralei os braços, saiu osso pra tudo quanto era lado. Mas lá no hospital, acharam que não era assim tão grave, não, e foram passando gente na minha frente. Passando gente, modo de dizer, porque nem foi tanto povo assim, senão a fila encurtava.

De preto, minha cor original, já tinha parte ficando roxa. Se não era gangrena, num sei o que foi. A enfermeira fez cara de espanto: Vixie, meu Senhor do Bonfim, que esse homem tá apodrecendo! Os médicos acorreram, me jogaram numa maca, levaram lá pra sala de cirurgia e quase que foi sem anestesia, de tanta pressa deles. Pressa ou doideira? Era madrugada, os negos vira as noites e embala os dias no plantão, num dá pra saber. Tem uns que até são meus clientes.

Daí que acordei, três dias depois. Num quarto com outro maluco. Tinha ainda duas camas vazias, depois dizem que num tem vaga quando a gente procura. O maluco passava os dias ouvindo Luan Santana. Tocava num celular de merda, que ele deixava já direto na tomada pra não descarregar. Olha o que fazem com o nosso dinheiro. “Amar não é pecaaaaaaaaado/ e seu estiver erraaaaaado”… Aquilo martelava na minha cabeça até dormindo.

Seis dias eu agüentei, doutor.

Nem pedi silêncio, seu delegado, só pra tocar outra coisa. Que aquilo tava doendo mais que os pontos, que os remédios, que o estouro da moto. Ele olhou nos meus olhos e cantou mais alto: “Eu tô apaixonaaaaaaaaaaado/ Eu tô contando tudo/ E não tô nem ligando pro que vão dizer… Que se dane o mundo”…

Nessa hora me ferveu o sangue. Parti pra cima dele com a faca de plástico mesmo. Pode acreditar, doutor. Com a raiva que eu tava, num precisava de outra coisa. Agora, quero vê quem vai ser o doido de tocar essas merdas pro meu lado.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

#Vazoutema



“Viver em rede no século 21: os limites entre o público e o privado” foi o tema da redação deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A prova vale uma vaga na universidade para milhões de estudantes em todo país. Devia também ser critério para habilitar o Brasil a concorrer a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Basta a gente pensar no quanto a inteligência governamental se empenhou para evitar o vazamento da prova. Medidas como impedir que alunos usassem lápis e caneta com corpo não transparente representam um avanço a ser compartilhado com todas as nações. Se eu fosse uma vestibulanda de mais visão na minha época, talvez minha nota tivesse subido significativamente com essas técnicas de muquiar a cola dentro do miolo do lápis.

Todo esse esforço governamental não foi páreo para a criatividade da nossa juventude. Que se não teve acesso ao exame antes da hora – o assunto da redação vazou para um jornal carioca uma hora antes do tempo mínimo para os alunos poderem deixar as salas – pelo menos compartilhou via redes sociais o tema da prova. Alguns até, mártires, foram descobertos tentando contrabandear a informação para a internet. Vai ver era essa mesmo a ideia, discutir os limites entre a prova privada e a opinião pública.

No Twitter, a galera começou a publicar depoimentos sob a sigla “#vazoutema”. Alguns foram particularmente inspirados: “Uma questão social: como podemos obrigar os funkeiros a comprar fones de ouvido?”, “Fim do mundo: seu país tem infraestrutura para receber o evento? Justifique sua resposta”, ou “A história do Corinthians. Observação: não precisa por título”.

Pense na loucura que foi entre a arapongagem em Brasília. Ou no pobre coração do ministro, batendo em descompasso, vendo sua candidatura à prefeitura paulistana naufragar diante do escândalo em tempo real. Se preferir, pense, nas polícias Federal e Rodoviária Federal, nos Correios,  todo mundo reunido com vontade de dizer “Não fui eu!”, mas com medo de ser o primeiro – sabe como é, o culpado, sempre tenta se defender primeiro. Devem ter respirado fundo quando um jornal divulgou o tema oficial. 

Tudo isso poderia ser simplificado se o Enem mergulhasse fundo nos paradigmas da educação nacional. E o que seria mais representativo das nossas raízes do que o clássico tema “Minhas férias”? Seria digno. Todos os alunos deste Brasil já passaram por esse tema. Pelo menos duas vezes por ano, inclusive. Já adquiriram todo o repertório e as técnicas necessárias para fazer seu texto em prosa, verso, dissertação, narração, carta, 140 caracteres, o que for. Desafio qualquer aluno coreano, norte-americano ou japonês a fazer melhor.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O meu nome é próprio

Então, republico aqui crônica minha que saiu no Vida a Sete Chaves. Vamos iniciar uma fase "Vale a pena ver de novo" aqui no Crônicas das 12. Em breve textos novos por aqui também.

A minha sala de aula tinha pares de “Danielas”, “Julianas”, e “Priscilas”, uma “Aparecida” e outra “Daniela Aparecida”. Em todas as turmas do antigo quinto ano só tinha uma “Aline”. “Aline Viana”, então, era único na escola. Exclusivo. Só sentia falta de um apelido, coisa que as outras tinham. Anos depois, com a internet, meu nome tornou-se cobiçado no mercado.

Daí fiz colégio, faculdade, abri contas de e-mail. Alguma “Aline Viana” do mundo conseguiu o privilégio de registrar-se antes de mim no Hotmail e no Gmail. Bati pé e inscrevi-me sem adotar como codinome algum numeral ou apelido. Ficou algo simples e elegante o bastante para divulgar nos milhões de currículos que enviei ao longo da vida.

Mas agora as sombras têm reivindicado o que é meu. Nome, e-mail, memórias e sanidade mental. E é um nome perfeitamente quitado, segundo minha mãe.

Elas criam um e-mail bem parecido com o meu. Daí distribuem por aí para quem não interessa, talvez. Como quem troca um número na seqüência do telefone para despistar alguém. Ou tentam me ganhar pelo cansaço.

Nessas já tive família em Recife. Meu pai virtual me recomendava cursos de língua, meus tios enviavam piadas. Apagava tudo sem ler. Imaginei que fossem notar que a outra nunca respondia e checassem. Até que minha mãe de Pernambuco me cobrou nos termos mais enfáticos por não visitar o tio Alfredo no hospital. Com foto do paciente e tudo. Mamãe, preciso fazer uma revelação: a cegonha trocou os e-mails.

Outro dia, foi um suposto irmão, com nome de desembargador, que me procurou, querendo saber da recuperação do braço quebrado. Respondi à genntileza: “irmãozinho querido, somos parentes não. Procure aí o e-mail da maninha e sucesso”. O brother, em sublime juridiquês, me chamou de ursupadora, queria saber quando abri minha conta. Ora, faça-me o favor, além de desinformado ainda vem me perguntar a minha idade! Eu vi primeiro e não tenho que contar nada. Abri, é minha e não dou, não empresto e nem vendo, tá me entendendo?

O último foi um hermano que diz ter me conhecido por essas veias abertas do continente. Pedia o contato de um professor uruguaio porque queria precisava encontrar algumas maria-joanas e contava que tinha me trazido alguns alfajors lá da capital. Apesar da dor no coração, pelos doces que amo, fui honesta. Não te conheço, amigo. Não tive professor uruguaio. Podia ao menos mandar o alfajor, o ingrato.

Pra não dizer dos vírus. Que enviados em meu nome, por alguma retardatária com menos espírito esportivo, o sujou em algumas praças. Pois é, em algum lugar, tem uma Aline Viana terrorista. Que queima o próprio nome. Essa deveria arder no mármore do inferno.

Nem assim coloco o nome à disposição. Não que ache que irá se valorizar mais, mas é que tem um valor afetivo, sabe? Ganhei de mamãe.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Dos anjos de Deus


O diabo passou por mim duas vezes nesses últimos dias e não me viu. Da primeira achei que estivesse distraído, mas da segunda ele passou bem do meu lado e foi como se eu não estivesse ali. Foi só aí que entendi: aquele cabeleireiro, que há exatos oitenta e nove dias tosou os meus fios pra me deixar com cara de rica, era um anjo disfarçado de pirata.

Pense em um Keith Richards paraguaio. Era o meu cabeleireiro. Vestia preto e usava uma bandana vermelha para cobrir a cabeça raspada . Só eu para não ver que um cabeleireiro careca é algo a se evitar. No mínimo, ele está naquele estado por culpa própria, se fosse bom, exibiria o próprio trabalho.

Também não sei bem que cara as ricas têm, quer dizer, ver coluna social nunca foi meu  passatempo preferido. Mas, definitivamente, não era a cara que eu saí do salão.

Os fios retos deram lugar a fios de todos os tamanhos, desde que não superiores a 10 cm. Ganhei uma franja de mulher branca. Branca alemoa, ainda por cima. O cabelo crespo aguardava apenas uma gota d’água para se rebelar.

Culpa eu não tive, leitora que me acusa. Colocaram-me em uma cadeira cinco metros distante do espelho. Minha miopia tem crescido a taxas chinesas nos últimos anos.

Se praga de cliente pegar, aquele homem já não está mais entre nós. É uma pena, pois poderia ajudar outras pessoas, talvez menos descrentes do que eu.

Estava na livraria e por duas vezes trombei com o diabo, como lhes falei. Velho conhecido meu, talvez fosse cobrar ou inventar alguma dívida. Mas, ele não me viu. Comprou umas revistas de turismo e se foi. Pensando bem, acho que ele também precisava de um bom corte de cabelo.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O hambúrguer e o paraíso



- Você sabe o que é um contrato verbal? E sabe quando tem que manter a sua palavra?
- ...
- Acabei de me comprometer. É, a me casar com o John! Nós dois começamos a falar sobre encontrar a pessoa certa, se ela existe e tal. E daí eu quase pedi uma nova chance, sabe? É eu sei, você vai me perguntar se eu nunca me canso disso. Não sei o que me deu e propus que a gente casasse.
- ...
- Não! Não agora. Só se a gente não encontrasse até ninguém até 2013, daí nos casamos.
- ....
- Faltam só dois anos e eu já deveria estar escolhendo a igreja, começando a pagar o buffet, vendo todos os vestidos da cidade, do país...
- ....
- Mas agora dei pra pensar naquele indiano, sabe?
- ...
- Como que indiano?! Aquele que vinha sempre, mas só provou um hambúrguer pela primeira vez semana passada! Lembra,  na sexta eu disse a ele que ninguém poderia vir a América, ir à uma lanchonete e não comer um hambúrguer? Daí ele disse que meu sorriso era como o paraíso, então eu valia o sacrifício. Acho que o nome dele era Gamal.
- ...
- E agora eu meio que comprometi com o John, mas o Gamal me deu o telefone dele. Dois anos é muito tempo, o John nunca vai saber. Vou ligar agora. Beijo, amiga!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Eu vi a aura do Rio

Aquela calça com os fundilhos no joelho, que ainda é moda, nunca me enganou. Ô coisa ridícula. Olho para as pessoas e me pergunto se ninguém vai gritar que o rei está nu. Não grito, sou velha demais pro meu aviso colar. Mas sei que devo conceder o benefício da dúvida, vez ou outra, por isso me preparei e fui conhecer o Rio de Janeiro.

Como todo mundo neste país, tenho mais horas de Rio na memória do que qualquer outro lugar. Sabe aquele roteiro: Cristo, Lagoa, Ipanema, Sambódromo? De tanto que vi, gastou.  

Outras centenas de arquivos ajudaram nisso: tiroteios na Linha Vermelha, na Linha Amarela, arrastão na orla de Copacabana e aquela lengalenga de chamar favela de comunidade.

Fui conhecer os monumentos históricos, o casarão real no Jardim Botânico, a casa da condessa de Barral, amante de Dom Pedro II, o Palácio do Catete, a Biblioteca Nacional. E a noite da Lapa. Queria me jogar. De asa delta, da Pedra Bonita.

Pense numa viagem de erros. Levei uma dezena de horas no trânsito pra chegar à terra prometida. O museu do Catete só abriria depois das duas da tarde – coisa pra desafiar a escassa paciência paulistana. Outros nem isso. O centro deserto, nenhuma loja aberta e nem era meio-dia quando chegamos naquele sábado. Entre as ruelas, os prédios antigos calados e, adiante, a Candelária em reformas. Só deu pra imaginar como tudo aquilo seria.

Daí cansei de ser turista. Sou brasileira, sou de casa. Fui à praia na Barra mesmo. Também fui ao Posto 9, em Ipanema, e vi camelôs trajados de árabes vendendo quibes e esfihas abertas. Sucesso. Vi, da Pedra do Arpoador, o sol se pôr. Mas gostei mais do Aterro do Flamengo: eles simplesmente fecham duas pistas de uma avenida imensa e emendam asfalto, parque e praia. Criançada brincando, gente jogando vôlei, pedalando, lendo à sombra, e até tomando banho de mar.

Comi feijão preto todo dia, graças à Ana. E jantei pão com presunto e queijo, autêntico de avó. E comida mexicana em um quiosque na praia, na Ilha do Governador. Ficou só faltando ir a um barzinho super bem cotado no festival Comida di Buteco, fechado em respeito à Sexta-Feira Santa. E conferi as relíquias de Bono e Madonna no Hollywood Cafe, que nem estava na minha programação, ao som de um rock de praia.

Vi o Rio dos meus amigos. Descobri um Rio família como uma cidade do interior, que jamais imaginei. As pessoas ali não sucumbem à metrópole. Como é, não sei, mas voltei meio carioca também.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

End's tonight

O ano passado bateu todos os recordes de casamento. Pelo menos na minha tabela: seis casais de amigos resolveram dizer o “sim”. Desconfiei, devia ser um sinal do fim dos tempos. A moça chamava o rapaz e disparava: “não vou pro juízo final solteira, meu amor!”. Fiquei sem entender, afinal os maias marcaram o evento, com bastante antecedência, para 21 de dezembro de 2012.  Deu vontade de alertar os noivos e noivas vítimas de possível chantagem emocional: ainda restava uma janela de quase um ano a se aproveitar. Mas aí descobri que o fechamento do planeta foi antecipado pra amanhã. Isso mesmo, sábado, 21 de maio.

O anúncio foi feito por um movimento cristão norte-americano. Concordo com o leitor que lembrar que eles fazem esse anúncio quase todo o ano, mas, convenhamos, uma hora eles podem acertar e vai que é amanhã? A tal “Family Radio Worldwide” está empenhada em espalhar a notícia por todo mundo.

A expectativa da associação é que, neste sábado, os escolhidos ascendam aos céus e os renegados pela benção divina fiquem por aqui curtindo um período de tormento, até o fim dos tempos. O fim do mundo ter sido antecipado é bem típico de Deus, querendo prender todos os jornalistas na redação.

O mundo acaba, mas a imprensa segue: não vai ter jornal encalhado nas bancas. Todos, com depoimentos de mil especialistas, dirão como nos preparar para esse momento único da humanidade. Os portais de internet estarão à toda com a cobertura em tempo real, enquanto as rádios dirão as rotas menos congestionadas para tocar a mão direita de Deus.

Pena que eu só soube hoje do fim do mundo. À noite já tenho compromisso: bar com os amigos. Gastarei, então, minha última noite na balada. Mas se tempo eu ainda tivesse, iria apelar à pessoa amada: “Vamos ficar só essa noite e depois vemos no que vai dar”.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Uma noiva para Gamal



A solteirice incomoda muito. Aos outros, principalmente. E estes, por sua vez, nos cutucam até tomarmos alguma atitude. Jamais aceitarão que a pessoa se acostume com este singular estado civil. Gamal foi vítima dessas boas intenções.
 – Não, não pode! Onde já se viu homem bonito, trabalhador e de boa família sem mulher? – Quem dava voz ao consciente coletivo era o cunhado de Gamal, que alimentava uma barriga de homem bem-casado.
Com isso, mãe e irmãs se sentiam no direito de cobrar também. Não queriam um homem encalhado em casa. Nenhuma boa família da Índia permitiria isso. Se ficava sozinho, era porque tinha voltado ocidentalizado. Em língua corrente: viado. 
– Já que você fica tanto tempo na internet, por que não procura lá uma mulher? Em um site de relacionamento? No Facebook? Vi uma pesquisa na tv que dizia que são 48% maiores as chances de se encontrar alguém assim do que pessoalmente.
 Mal não podia haver. E era melhor do que deixar o pai, até ali de fora da polêmica, procurar entre as boas famílias da Índia uma mulher para ele. 
 Boas mulheres sim, mas não pra ele Gamal, que veio sim um pouco ocidentalizado da América, onde fez faculdade. Mas não como temiam. Voltou querendo mulher loira, de peitão, original ou de silicone, não fazia preconceito.
 Almoçava no escritório para poder ficar nas salas de bate-papo e nas redes sociais. Chegou até bloquear algumas candidatas mais afoitas. Sexo nos primeiros toques? Americanizada sim, mas sem perder a pureza. E não só de coração. 
 Demorou, mas encontrou. O Facebook tinha sido uma ótima ideia, iria agradecer ao cunhado. Temente à Shiva, loira e com peitão. A família estranhou um pouco os cabelos tingidos. A moça era de poucas palavras e nenhuma família, todos mortos em um acidente no Ganges. Anusha pagou o próprio dote. E a sogra achou um lucro ela saber fazer o tchai.  
 Na primeira noite de casados, não consumaram a união devido ao cansaço após tanta celebração. Depois ela disse estar menstruada, depois foi enxaqueca, depois passou a seduzi-lo com jantares sempre regados à bebida farta. Gamal logo cochilava e só iria fazer nova tentativa na noite seguinte, quando era novamente traído pelo desejo de comer.
Quando a barriga de homem bem-casado apareceu, tornou-se o orgulho da família. Ninguém iria imaginar que passava fome de mulher. 
– Exija seus direitos de marido, Gamal! – Ouviu de um amigo quando um dia desabafou. 
Tentou, insistiu, mas Anusha escorregava sempre. Ou ele adormecia, ou vinha visita, ou ela estava naqueles dias, ou qualquer outra coisa. Ao cabo do terceiro mês, não a tinha visto toda nua. Só umas partes: o pé na sandália de tiras, o tornozelo quando a barra da saia levantava centímetro e meio ao subir a escada, os braços e o colo no decote. Era uma loucura para Gamal, que viveu tanto tempo sem dar por falta de mulher.
O amigo confidente contou para o cunhado de Gamal, que consultou o sacerdote e este fez saber a outros homens e todos concordaram que aquilo não estava direito.
Eles exigiram de Anusha uma explicação. Ela se fez de ofendida, não quis falar com ninguém e se trancou no quarto. Pressionaram. Gritavam que iriam arrancá-la de lá e obrigá-la a servir o marido de qualquer jeito. 
Arrombaram a porta, mas Anusha conseguiu sair pela janela. Deitou a correr pelo bairro e toda gente atrás. Gamal, perdido no meio do povo, ia junto. Perdida ela também, acabou por encurralar a si própria em um beco. Até mulheres já faziam parte da turba agora. Uns batiam, outros tentavam arrancar-lhe as roupas. Mal se ouvia seus gritos sufocados de protesto. O marido temia pela esposa e já se acusava e se arrependia por aquilo tudo. 
 Quase nua, estava visível qual era o problema da mulher: o volume na calcinha, o gogó se destacando, uns pelos muito grossos por todo o corpo. Era homem a Anusha. Não fosse a polícia chegar, ele viraria mulher na marra, de tanta pancada. Gamal é que não sabia mais o que era, onde estava. Fechou no mesmo dia o perfil do Facebook e fez as malas. Iria se jogar na América, garantiu. Queria agora de todo jeito a sua loira com peitão, dela ou de silicone, não fazia preconceito desde que fosse mulher, isso sim, original de fábrica.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A primeira confissão


Que pecado contaria ao padre? – Marina se perguntou a tarde inteira e, já noite, ainda não sabia. A primeira comunhão era uma coisa complicada: primeiro tinha sido batizada, depois fez o cursinho e agora a confissão, o último desafio antes de receber a hóstia consagrada. 

A catequista disse para a turma contar a verdade na confissão com o padre Ercílio. Marina sabia que aquilo era um truque. Se dissesse a verdade, o padre daria o mesmo sorriso pequeno que o pai dela fazia antes de dar aqueles castigos realmente grandes e prepararia com capricho a penitência. O medo dela era ter que rezar até dar câimbra. E se ele a mandasse ajoelhar no feijão? 

Nem o padre, nem a catequista e nem a mãe iriam acreditar nela. Dizer que não tinha pecado, onde já se viu? “Todo mundo tem pecado, quem não tem mente e isso é muito grave porque daí são dois pecados: a arrogância e a mentira”, a tia tinha falado no catecismo. 

O livro do curso estava aberto sobre a cama na página dos dez mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas, ok; não usar o nome de Deus em vão, também; guardar domingos e dias de festa, lógico que sim; honrar pai e mãe – ela obedecia porque senão já viu, né?; só levantava falso testemunho em caso de legítima defesa, como agora; cobiçava as coisas? Se não sabia o que era, não podia ser culpada. 

Pegou um banquinho e posicionou do lado da estante. Ainda teve que subir no móvel para conseguir alcançar o dicionário da avó. Cobiçar era querer algo que era dos outros, dizia lá. Mas só sentia isso um pouquinho, não passava do Natal, quando o pai lhe comprava os presentes. Roubar não fazia. O homem do saco leva criança que rouba pra trabalhar pra ele. Ou ia pra Febem, já tinha visto na tevê.  

O último pecado só podia ser coisa de adulto: castidade. Palavra que lembrava castiçal, coisa de vó, sabe? Se era algo parecido com castiçal, então, tinha a ver com vela e com fogo, e o pai a proibiu de mexer com fogo. Podia ter olhado de novo no dicionário, mas eram tantas folhas, as letras pequenininhas e ela estava tão cansada que dormiu antes mesmo de pensar em tudo isso. 

Sonhou que o padre confiscava seu diário. “Olha, Marina! Está tudo aqui! Não tem pecado, ora essa! Vá rezar vinte ave maria e trinta pai nosso, já! E que Deus te perdoe!”, dizia ele enorme para uma Marina encolhida atrás do terceiro banco da igreja. 

A menina acordou certa de que devia entregar ao padre todos os seus segredos. Com certeza foi Deus que lhe falou em sonhos, pelo menos a mãe e a catequista diziam que ele fazia isso toda hora em resposta às orações.  Ela nem orou, mas como estava na maior atribulação achou que Ele, muito sábio, resolveu ajudar mesmo assim. 

A fila da confissão tinha todo mundo de todas as turmas do catecismo. A primeira a entrar foi a Débora, uma ruivinha, que saiu de lá rapidinho e chorando. Vai saber o quê ela tinha feito, pensava Marina. Desconfiou, lá no fundo, que ela também achava que não tinha pecado nenhum. Quando chegou a sua vez, sentou na cadeira à frente do padre – lá na igreja do Jardim Atalaia não tinha dessas coisas chiques de casinha pra confessar, era olho no olho, mesmo para as crianças – e falou, sem nem respirar: 

- Padre, tá tudo aqui. O senhor lê rapidinho, por favor, e não conta nada pra minha mãe. 

Marina deu ao padre Ercílio a chave para abrir o diário lilás. Ele ficou olhando pra aquilo algum tempo, depois abriu, deu umas folhadas. A menina pensou que ele não conseguiria entender sua letra apertada. 

- Padre, a minha letra é feia mesmo, mas eu prometo não faltar mais na aula de caligrafia. Se quiser, eu leio pro senhor. 

O padre agradeceu, mas continuou lendo em silêncio por mais alguns minutos. Depois fez uma cara que ela nunca viu nele e mandou Marina rezar três pai nosso e duas ave maria. Foi a menor penitência da turma.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Três é demais


Dois filhos eles queriam. Menino e menina ou dois de cada. Mas apenas dois. Foi o que disseram ao médico. Choro após choro soou na sala de cirurgia. Vozes distintas. Três. Eram os analgésicos, só podia ser, ela pensou.

Eram três bebês. Deus, eles só tinham dois nomes: Marcela e Isabella. Na verdade, quatro. Também pensaram em Marcus e Gabriel. Se viesse um de cada, olhariam bem para eles e tirariam a sorte no cara ou coroa.

Três meninas. Só podiam ficar com duas, Nina repetia para si mesma no quarto. 

Pedro soube pelo médico, logo após o parto. Só conseguiu dizer:

- Nós só queríamos, queremos, dois filhos. Qual parte você não entendeu?

O marido foi pensar no carro em como dizer à Nina que não tinha mudado de ideia, ainda queria só dois filhos. Era o que cabia no apartamento, no orçamento, na vida deles. Planejamento familiar, ele acreditava nisso.

No princípio poderiam ter sido os analgésicos, mas agora ela estava desperta. Três não eram duas. Ela pediu dois bebês ao médico que fez a inseminação. O marido poderia confirmar. A cigana havia previsto que iria encontrar um homem que gostasse de viajar, um homem confiável e fiel que seria sua rocha, com quem teria dois filhos. 

Conheceram-se na festa de ex-colegas da faculdade. A festa foi acabando, a carona dela embriagou-se tanto que só restava passar a noite ali, no frio do salão. Ela desabou no sofá exausta e pegou um café para não apagar, ele puxou conversa. Estava com um amigo na mesma situação. 

Descobriram que tinham ido aos mesmos shows, visto os mesmos filmes, adoravam suco de melancia, freqüentavam a mesma igreja, tinham vários amigos em comum. Eram quase a mesma pessoa.

Assim que recebeu autorização, Pedro subiu ao quarto para visitar Nina. Foi verem-se para saber que tomaram a mesma decisão: continuavam querendo duas crianças. A vida não é promoção, onde pelo preço de duas se leva três. Avisaram ao doutor Felipe para preparar apenas duas delas para levarem.

O médico também não quis saber de promoção. Encaminhou as três meninas ao conselho tutelar. Aos pais, disse para procurar o Procon. 

O texto foi baseado em uma notícia veiculada pelo portal iG sobre um casal que resolve colocar para adoção um de seus três bebês. Confira aqui

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Cuidado com as coisas fúteis


Inferno astral não são os outros, meu bem. É o seu céu mesmo que pode andar meio virado, e isso bem antes do mês do aniversário e, pior, várias vezes ao ano. A fase dura entre três a dez dias e é mais ou menos como uma tpm fora de época. Eu não percebi na hora, mas o primeiro sinal dos maus dias foi esquecer meu chocolatinho da calma porque não ouvi o despertador tocar e precisei sair correndo para não perder o trem das 7h, isso numa véspera do feriado. 



No site que dá as previsões – que não sei porque ainda leio, já que é sempre um tal de “não faça isso”, “não faça aquilo”, que mais parece a minha mãe do que astrologia – a orientação para o final de semana era para tomar “Cuidado com problemas de ordem fútil”. Nessa fase a pessoa meio que vira uma casquinha de ferida, implica com qualquer um por qualquer coisa.

Só que não é verdade, eu implico com o quê já implicava antes. A diferença é que tenho a impressão de que as pessoas fazem tudo de propósito para acabar com o meu humor. Se não lhe parece muito equilibrado da minha parte, tudo bem: sua opinião não é muito importante para mim neste momento.

Sábado foi o início do ciclo. Era minha primeira folga no hospital em dois meses. Sou enfermeira e posso garantir que não tem nenhum sex appeal nisso. Quem quer isso da vida, dê um F5 e vá ser bbb. Mulher fruta. Paniquete, sei lá. Sexo em hospital só rola na cabeça de adolescentes e de velhinhos já chegando no Alzheimer.

Não vou me alongar em divagações. Sábado, a faxineira faltou. Motivo: precisava ensaiar para um concurso de forró. Iria representar o pessoal do bairro, da igreja, sei lá. Não, não podia indicar ninguém, mas viria normalmente na semana que vem. A casa de pernas pro ar. O telefone toca, ainda são 8h30 da manhã. É a minha sogra avisando que vem pra cá. Seu Denis, de cama há meses, está de caso com a enfermeira da noite. Ela vai trazer as malas.

O filho dela não sabe o quê fazer, mas se arruma rapidinho para não perder o futebol com a turma da firma. Não tem cama para ela dormir aqui. As pessoas deveriam encarar isso como um sinal, mas não. E lá vou eu comprar uma cama que não poderei enfiar em lugar nenhum.

Domingo. Ela já está aqui há 16h. Reclamou que o táxi do aeroporto não tinha ar condicionado. Que a vizinhança era feia. E que as bebidas alcoólicas da geladeira pareciam chá. Deveria ter explicado que era para, quando bêbada, não correr o risco de atirar alguma visita simpática pela janela.

A cama nova só será entregue amanhã. O filhinho lhe ofereceu a nossa cama. Eu fiquei com o sofá. Ele tentou se ajeitar com umas cadeiras, ainda pôs umas almofadas. Não deu certo e acabou indo dormir no carro.  Achei foi pouco.

Choveu o dia todo. Poderia esquecer do delivery porque motoboy não é anfíbio. A tv a cabo ficou fora do ar. Fomos ao cinema porque a janela começou a ficar convidativa demais. Mais de meia hora pra achar vaga no estacionamento. Os filmes todos já tinham começado. O jeito foi assistir à transmissão de uma ópera. A sogra aprovou. Eu e o Ricardinho ansiando por uma janela.

Mamãe liga à noite. Meu primo Maurício quer largar a mulher e voltar pra casa da vovó. Por isso havia tantas ligações perdidas da Sandrinha no meu celular. Tive que concordar com o padre da televisão: “as novelas estão acabando com a família”. Não vou retornar as ligações: seria muito chato eu dizer que o primo está coberto de razão. A Sandrinha é um encosto, todo mundo sabe. Ainda correria o risco de ele vir chorar no meu ombro. Soltei a tomada do telefone fixo. Eles que se explodam pra lá, na minha folga.

Segunda-feira, último dia de feriadão. O gerente da loja da cama liga e diz que não faz entrega aos feriados. Mas vender ele pode, o danadinho. Mandei a sogra ir lá comprar um guarda-roupa. Agora ele vai ver o que é promoção.

O Ricardinho escorregou no futebol e torceu o pé. Mandou o Beto vir do campinho me chamar. Ele entrou todo cheio de lama apartamento adentro. O cara arfava como se correr 200m fosse alguma São Silvestre. Não consegui entender nada. Apenas chorar. Aquelas pegadas enormes, meu tapete branco, a sogra, a cama, o guarda-roupa, a chuva que continuava, minha folga.

Entreguei um gelol pro Beto. E dinheiro pro táxi. Que fosse para o hospital ou para qualquer outro lugar, tanto fazia. Coisas fúteis? Não, pessoas fúteis, por todo lado. Vontade de ir buscar lá no Jardim Ângela aquela faxineira biscate pra dar um jeito nisso aqui, mandar a sogra para um albergue pra ela reclamar, agora com razão, que sentiu até os paus da cama sob o colchão, vontade de ir para o hospital.

Neste final de semana o plantão é do doutor Marcos. Podia usar aquela lingerie branca nova. A vendedora fez questão de dizer que era importada. Liguei pra Marcinha que topou trocar a folga, agora quem vai ser fútil sou eu.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Confissão

A terapeuta diz que minha implicância é ciúme, mas tenho o tempo a meu favor: sempre detestei meninas mimimi. Menina mimimi é aquela que é toda risadinha, que é uma delicadeza só, que criança não jogava bola pra não mostrar a calcinha, fica vermelha se ouve palavrão e é incapaz de pensar por si mesma. É uma fraude. E como faz sucesso.



Chega até a me dar urticária. A última crise foi tamanha que até me submeti a um teste, desses de revista, para aferir o meu grau de feminilidade. A pontuação ia de zero a 300. Aqueles com perfil masculino deveriam marcar até 150. De 180 em diante, estavam as legítimas filhas de Eva. Soma daqui, revisa dali, meu resultado foi 155.

Veja que cento e cinqüenta e cinco não é código pra traveco. E se fosse, não creio que eu causasse maiores fenômenos.  Diz o tal do teste que a zona cinzenta entre 151 e 179 indica quem tem a mente equilibrada entre os dois tipos de raciocínio, feminino e masculino. Ainda sob os efeitos da pressão mimimi, quase aceitei um tratamento de choque: pintaria meu quarto de rosa, iria trabalhar sempre de saia e saltinho, cortaria franjinha e passaria a ler Sidney Sheldon.

A menção a Sheldon foi absolutamente técnica, como minha mente racional e quase absolutamente masculina exige. Lembro de ter visto na internet uma pesquisa que dizia que mulheres que lêem romances românticos batem de longe as que preferem outros tipos de leitura no quesito relacionamentos – a rivalidade, afinal, também consiste nisso.

Eu tentei. Fui lá na livraria e peguei um título qualquer com uma mocinha em um vestido de época na capa. A reação do meu organismo foi violenta: quase o deixei cair no chão. As páginas transbordavam – acho que só uma desintoxicação poderosa pra me livrar da má influência – de coisas como “crepúsculo”, “lágrimas que rolavam pelo rosto”, e “ela sorriu lentamente”.

Combater o mimimi é de família. Ainda criança, minha avó, pessoa da maior seriedade, interrompia a leitura do evangelho para me lembrar que “muito riso, pouco siso”. Não preciso tomar juízo graças a ela e, talvez por isso, sinto falta de autenticidade na mimimi. Tem uma frase do poeta Vladimir Maiakovski perfeita: “Amar não é aceitar tudo; aliás, onde tudo é aceito, desconfio que há falta de amor”. Gente que não peida e que não tem opinião, desculpa, mas, não tem vez comigo.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Selo de qualidade

A primeira vez a gente nunca esquece, já disse Washington Olivetto. Pois é, o “Crônicas das 12 badaladas” teve a honra de receber seu primeiro selo de qualidade do Reinaldo, da Claquete Cultural. Quase tive um treco quando vi: foi muita emoção! rsrs



O bacana é que, como membro da Academia, agora também posso nomear até 15 outros blogs para receber o prêmio. “And the Oscar goes to” (sempre quis dizer isso):


Saciada a minha ansiedade de revelar os nomeados, agora seguem as respostas do questionário que acompanha o selo:

Nome: Aline Viana da Cruz
Uma música: Times like these – Jack Johnson
Humor: depois que eu consigo ficar acordada, costuma ser bom
Uma cor: azul
Uma estação: verão
Como prefere viajar: de carro ou de ônibus. Gosto de demorar um pouco pra chegar, e poder apreciar a paisagem no caminho
Um seriado: Anos incríveis
Frase ou palavra mais dita por mim: “Relaxa, vai dar certo”.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pensa, que pensa


Era de tanto pensar que Maria perdia o amor. Pensou primeiro que não queria amar ninguém. Pensou depois que ele era velho demais. Só que um beijo, tudo bem. O beijo poderia ser melhor, não pode deixar de observar. Depois percebeu que ele guardou a carícia melhor mais pro final. Na noite seguinte pensou que vê-lo de novo seria o máximo.

Mas pensou de novo que ele era muito velho. E que vestia umas calças jeans de vaqueiro que só por Deus. E que ele era diplomata. Antes achava que diplomata era um carro, seu pai tinha tido um. Não sabia que tinha gente diplomata. Explicava o terno bege, como o carro. Quem usa terno bege? Diplomatas.

Isso foi na semana passada, já devia estar pensando em outra coisa. Vai ver era uma louca obcecada. Ela mesma reconhecia que sempre demorava pra esquecer. Primeiro foi André: quatro meses e dez dias juntos, para 18 meses de reflexões antes da próxima rodada, com 311 turnos. Parou de pensar porque cansou.

No Mauro não pensou muito. Mas no Rogério pensou bastante. Em se livrar, depois em deixar rolar, namorar. Muito, muito mesmo, pensou quando romperam. Até gritar. Ou melhor, ele gritar. Pensamentos são energia, energia emite raios, raios queimam a gente. Queimadura dói e a gente grita. Pensaram mais devagar, por precaução. Voltaram. Até que pensou muito, em casar. Quis parar de pensar na mesma hora. Mas não parou. Só não pensava junto.

Pensou em uma ou outra pessoa naquele tempo. Mente vazia é o laboratório do diabo, haviam lhe dito. Era o contrário. Pensar demais.

Na cabeça de Maria não fazia silêncio. E não tinha pai, mãe, nem ninguém da polícia ou da prefeitura pra apelar. Pensava que não sabia inglês e que ele sabia também espanhol, alemão e chinês. Não tinha carro, também nem ele que vivia com chofer. Ele, estrangeiro, ela, sem passaporte. Seria madrasta de dois meninos dez e doze anos mais velhos que ela, com sotaque e malcriados.

Só daria certo se ela não pensasse tanto. Se a boca dele fizesse nela um imenso clarão. Desses que emudecem tudo ao redor. Em português, ela explicou à Bia: “Sabe, eles podiam chegar, me dar aquele arrocha e dizer ‘Cala a boca e me beija’. Não pode ser tão difícil”.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Aos 50


Toda mulher tem uma fase de diva. Só que diva brasileira é diferente: tem todo um glamour, mas ela se destaca mesmo é pela sinceridade. Luísa Brunet, Vera Fisher e até a caidinha Miriam Rios confessaram recentemente que estavam sem sexo há, no mínimo, dois anos e contando. Carmem só então se deu conta de quantas folhas do calendário haviam se passado desde aquela noite com André, ao mesmo tempo em que se viu parte de uma comunidade seletíssima: a das novas virgens.

Aquelas mulheres estiveram ali a sua vida toda, ou pelo menos, por toda sua vida adulta, sem nunca terem compartilhado com ela o que fosse.  Nem ideias ou cor de cabelo. E eram da mesma geração, como Shakespeare e Gil Vicente. E acabava que ali, trinta anos passados, estivessem todas com a cama vazia.

Vazia como o mercado de homens. Guris de um lado, gays de outro. Vibradores ao lado do caixa.

Da última vez com André, mal se lembrava. Recolheu suas coisas pela casa, passou o café e deixou uma nota breve – “chega”. Era um feriado prolongado qualquer. Lá fora, céu azulzinho, com sol fraco. Caminhou na praia, tomou sorvete, redecorou o apartamento.

Mudou de emprego, de corte de cabelo várias vezes, aprendeu alemão, conheceu Buenos Aires, fez drenagem linfática, passou a ir à academia. Acordava cedo, trabalhava até tarde, ia a festas de gente que não conhecia. Dormia sozinha. Nem se deu conta.

Era uma mulher santa, quase uma monja, pensou consigo mesma. Não fazia sexo, não lembrava que tinha.  Era diferente de todas as mulheres com quem convivia. Semelhante só às divas. Foi de espelhinho em punho e pose de contorcionista verificar: estava lá, do jeito que mamãe e papai haviam feito.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Senhora do destino


Esta semana matei um senador da República. Começar o ano exercitando o próprio poder dá uma sensação boa. Nem que seja o poder da palavra. Pois estava no bar, domingo à noite, a comentar que não havia tido nenhuma morte de figura importante na passagem do ano. E mal falei, o Zeca Camargo interrompeu seu discurso fantástico para comunicar a passagem de Eliseu Resende, eleito pelo Democratas de Minas Gerais.

Sei que ele foi alguém digno de nota, mas voltemos a falar de mim. Dias antes eu havia me recusado a desejar a morte de alguém justamente por ter medo de funcionar. Temia que fosse me tornar incontrolável, possuída pelo dom maligno. Começaria a enumerar quem deveria ser suprimido. Penso que haja alguns outros parlamentares que mereçam prioridade.

Vejo que o aluguel de um talento desses não pode ser desconsiderado sem uma cuidadosa análise comercial. Poderia atender assassinos profissionais, amantes dispensados, invejosos. Colocaria um cartaz em um poste na esquina da Ipiranga com a São João e outro na Ibirapuera com a Jurupis. E usaria um celular pré-pago para evitar qualquer imbróglio com as autoridades.

Também nesse aspecto seria um serviço com qualidade internacional para quebrar qualquer investigação científica: nada de rasto, digitais, testemunhas. Apenas deveria tomar cuidado para não ser vítima de eventuais despachos ou sessões de descarrego, não se deve esperar que a concorrência se perca sem protestos.

E não tem um efeito colateral. Um prócere da República se foi por minha culpa e eu dormi o sono dos pedreiros. Sonho sobre sonho numa narrativa ilógica. Construção de tanta solidez que bloqueou o som do despertador e me fez perder o trem.
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