sábado, 27 de março de 2010

A palavra tem poder

O médico ouviu tudo o que ela tinha a dizer. Pra sermos fiéis aos fatos, ele leu tudo o que ela tinha a dizer. Imagine a cena: ela e o médico trocando bilhetinhos como na escola.

Não tinha voz. Primeiro foi a dor de garganta, depois a voz sumiu aos poucos e há dias que ela só conseguia assobiar, o que não conta porque assobio só passarinho entende.

Que não se preocupasse, aquilo era cada vez mais comum. Sabe, doenças psicossomáticas. Porque olhando, veja bem, não há nada de errado com a sua garganta, nenhuma inflamação e nada de errado nas cordas vocais também.

Mas, doutor, eu preciso voltar a falar - vários pontos de exclamação. 

Não, minha filha. Você precisa falar. Tem algo entalado aí que não vai liberar o resto. Está aqui essa guia para a acupuntura e esta outra para o psicólogo porque eu realmente não vejo nada que eu possa fazer.

Mas você disse que não tinha nada – mais pontos de exclamação.

O médico achou que só faltava ele ter que desenhar. “Tem palavras que ficam entupidas, você não fala e elas não deixam as outras sair. Claro que não consigo ver que palavras são, mas que elas estão aí, estão”. 

Já era o terceiro médico. Nenhum dos outros sabia o que podia ser. E agora essa! Ele queria o quê, que sua garganta viesse com legenda?

Voltou pra casa com as receitas, com a certeza de que sua mudez seria eterna. Palavras entaladas? Era demais. 

Não tinha nada entalado ali. Ela era vazia, completamente vazia e estava bem assim. Não tinha com que se entalar. 

O terapeuta pedia que ela falasse sobre qualquer coisa, sua semana, seus amigos, se gostava da voz. Aquilo não parecia levar a lugar algum. E ela enchia páginas. 

Você não está se esforçando, ele disse. O que quer que esteja aí não vai sair sem você forçar.

Então erraram o diagnóstico, é prisão de ventre! Valia uma nota na Science: “prisão de ventre também trava a língua”. 

Sua garganta inchava mais a cada dia. Que palavras seriam aquelas? Ela simplesmente não sabia. 

Houve uma noite. Esta noite ela só sabe que existiu porque é certo que acordou naquele dia e depois no dia seguinte. Mas do pôr do sol até o amanhecer havia um completo vácuo. Acordou na própria cama, despida, sozinha. Nada de estranho no quarto. Apenas o buraco na mente. Crescendo. 

Poderia ser um “boa noite, Cinderela”. O vestido preto estava jogado na cadeira ao lado da cama, tinha um pé de sandália na sala e outro embaixo do chuveiro. Um beck turbinado. Ou sua mente tentando protegê-la de algo ruim demais. Se fosse isso, por que sua garganta queria sabotar se vinha dando certo até agora? 

Isso hoje, amigo leitor, está sendo investigado, porque a paciente explodiu. E como ela imaginou, deu mesmo na Science, e no Times e na Folha e no Le Monde. As palavras saíram aos montes, estão espalhadas, quase invisíveis, por todo o quarto. O governo designou uma equipe da polícia científica e outra médica para tentar por ordem naquilo. Já dizia sua avó, cuidado com as palavras.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Os 300 da M'Boi Mirim

São seis horas da manhã e já tem gente protestando em São Paulo. Só poderia ser periferia. Zona Sul. Fecharam a avenida, ninguém passa. As pessoas não podem chegar ao trabalho. Mas, não faz muita diferença. O problema para os manifestantes, e para as pessoas paradas no trânsito, é que eles levam cinco horas para ir de casa ao trabalho. E agora seus patrões querem que paguem por isso, além de na pele, no contracheque.

Impossível não se solidarizar com eles quando se está também preso no congestionamento. São mais de cinco horas da tarde quando o ônibus para em uma fila sem fim. Talvez um reflexo do protesto da manhã. O sol bate inclemente na janela do coletivo, uma senhora não para de gritar para a madrinha, no celular, que sim, está com saudades, que irá visitá-la assim que chegar em casa. Todos sentem sede, fome, cansaço, sono. Só escapa o cobrador, em papo animado com uma passageira. Às seis, não se andou mais que um quilômetro, ou um quilômetro e meio. A solução é descer e ir a pé mesmo.

Não basta encarar cinco horas de trânsito, em silêncio, para trabalhar todos os dias. Muita gente em pé. Tempo suficiente para se ir até São José do Rio Preto, ou quase chegar ao Rio de Janeiro. O patrão irá descontar o atraso, quando bem poderia demitir.




Demorou para que o trânsito paulistano levasse mais que carros às ruas. Os jornais apresentaram saldo de um ônibus com o vidro quebrado e uma pessoa atropelada, com ferimentos leves, isto, vale lembrar, com trezentos nas ruas pedindo condições dignas de ir ao trabalho. Fosse um tempo atrás, diriam que o Haiti é aqui.

Para a autoridade municipal, o momento é de fé e paciência. Duplicar a via não é uma possibilidade. Na verdade, não dá pra fazer nada agora, disse o prefeito. O jeito é esperar que o metrô fique pronto, se tudo der certo em 2011. Até lá, é meio salário pra todo mundo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Interessante

Era tarde da noite e o casal se dirigia ao metrô. Haviam se conhecido em um bar, ele lhe oferecera um drinque, conversaram sobre literatura, autores favoritos, livros que marcaram cada um. O inusitado do papo causou nela uma impressão positiva. No caminho, porém, como num teste para a admissão em um emprego, ele perguntou: “Você é uma pessoa interessante?”.





Aquele homem era um bocado impertinente. E interessante. Ela poderia jurar que, em 25 anos, nunca lhe tinham feito esta pergunta. Claro que sim, oras! Inclusive mantinha um relacionamento passional cheio de idas e vindas com uma mulher madura.

Como ele ousava questionar se ela era interessante? Não a convidou para beber, não se ofereceu para sair? E se não fosse interessante, ele daria meia volta? Não havia bebido como de costume, então tinha certeza de que não se enganou quanto à pergunta.

Sua mãe lhe dizia, o tempo todo, que os homens estavam cada vez mais exigentes, mas aquela entrevista era um absurdo. “Vem cá, você tá brincando comigo, né?”, perguntou.

"Brincando? Por quê? Com uma mulher como você não se brinca” – ele respondeu.

Era demais! Como assim, ele falara a sério? E a revolução sexual, e a queima de sutiãs? E as presidentas ao redor do mundo todo? Ora se ela não era interessante!

“Como assim, se sou interessante? Acho minha opinião meio suspeita. Por que você não paga pra ver?", respondeu. Agora teria que fingir até isso, senhor! Não sabia mais se era interessante. Ele a desestabilizara, naquele instante ambos tiveram esta certeza.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Portabilidade



Cliente chega apressada ao balcão do Céu, companhia que oferece serviços de gerenciamento de vida pessoal em mais de setenta países. Bolsa enorme no ombro, pasta abarrotada, papéis e sanduíche na mão. O som dos saltos contra o piso chamou a atenção do segurança, "até que está bem conservada", pensou ele consigo. Outros clientes aguardam em fila e após cerca de quarenta e cinco minutos, em pé, chega sua vez.


Atendente: Bom dia, senhora, em que posso ajudá-la?


Cliente: Quero fazer a transferência da minha antiga personalidade para o meu momento atual.


Atendente: Ok. Qual o número do RG da senhora?


Cliente: Vinte e cinco, sete, três, três, quatrocentos e cinqüenta, barra xis.


Atendente: Estou vendo aqui no nosso sistema que a senhora já foi nossa cliente, mas agora está com outra operadora. Qual seria o motivo da transferência?


Cliente: Sinceramente, acredito que isso não seja da sua conta.


Atendente: Senhora, é nosso procedimento padrão registrar as razões desse tipo de solicitação. Não poderei estar lhe atendendo sem que isso seja realizado.


Cliente: Já fiz outras transferências antes e não tinha nada disso. Minhas razões são particulares.


Atendente: Desculpe, senhora, mas todas as transferências são feitas por razões particulares. Para prosseguir com o atendimento é preciso declarar o motivo específico do pedido.


Cliente: E o que vocês fazem com esse tipo de informação? É algo íntimo e que não é mesmo da conta de vocês.


Atendente: Tudo fica registrado no sistema, o que permite que a empresa possa conhecer o perfil dos nossos clientes e desenvolver soluções individualizadas às suas necessidades.


Cliente, batendo o pé e acendendo um cigarro: Soluções individualizadas, promoções! Quem me garante que isso não vai cair na internet?


Atendente: Minha senhora, não é permitido fumar aqui no atendimento ao cliente. A senhora pode sair e fumar ali fora.


Cliente: Olha aqui, fiquei esperando esse tempo todo e você ainda quer me interromper na minha vez? Você não tem como garantir que não vai ficar todo mundo sabendo, não é?


Um cliente da fila: Vá fumar lá fora, dona. A gente também quer ser atendido.


Cliente, apagando a bituca com o pé: Até parece que sou só eu que fumo por aqui. É minha vez, só saio quando terminar, diz para a fila impaciente. Que seja. Meu querido, quero porque agora estou com um bofe novo. Registre aí. Poderoso, chique, rico. E de noventa e seis a dois mil e um, quando eu saía com o Flávio Meira, tinha o tipo certo para namorar com esse homem. Tá anotando, aí? Eu era magra, não tinha fome porque amava. Era alegre. Lia muito Veríssimo. No JB, sabe? E era segura como a Susaninha.


Atendente: Que Susaninha, senhora?


Cliente: A Vieira, a Susana Vieira! Preciso voltar a ser aquela mulher hoje mesmo ou esse bofe me escapa. A fila é grande, meu querido. Serei eu mesma, só que a melhor eu para essa emergência. Mas que ninguém use minha personalidade de agora, viu moço? Vai que eu preciso. Quanto é mesmo?


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