terça-feira, 28 de dezembro de 2010

E é finito


Fazer aniversário em dezembro não é para qualquer um. Andei dizendo muito isso e as pessoas não acreditam, mas é verdade. Balanço de final de ano somado à análise inevitável de que se está ficando mais velho e ainda não se está lá, aos quase trinta, requer estrutura reforçada, muito chocolate, sorvete e filme da Reese Whiterspoon. E ainda bate aquela sensação de que vamos renovar promessas automaticamente, como se fôssemos o Paulo Maluf de nós mesmos.

Mas avaliando com calma, revendo as tabelas e batendo os diferentes índices é possível um entusiasmo quase lulista. Por isso, em edição inédita do “Crônica das 12”, vamos dar nomes aos bois, os melhores de 2010:

Dio, Evelyn, Denis, Grazi, Coru, Karina, e Fê – foi um ano de almocinhos das mais variadas cozinhas e dos melhores bate-papos de computação à dinâmica familiar, de RPG ao mais novo filme em cartaz.  Precisamos manter a ideia na pauta de 2011. Nesse ano a turma cresceu com a chegada da Grazi, o melhor reforço ao grupo em anos. E que o deus que combina as agendas nos abençoe.

Aline Macário e Macarrão – ela é meu avatar em Americana (SP)! Vale qualquer viagem para revê-los.

Reinaldo – obrigada por esse blog – afinal o dele (confiram a Claquete encabeçando a lista ao lado) me inspirou a começar esse projeto -, por alimentar o meu gosto pela sétima arte e pelos pitacos sempre precisos aos meus textos, dos quais serei eternamente dependente.

Maysinha – a melhor editora do mundo, muito obrigada pelas dicas, pelo carinho e amizade.

Carpinejar e Marcelino Freyre – escrever é preciso e é muito mais gostoso com as dicas de vocês. São dois escritores fodásticos, que quem não conhece precisa parar tudo e ler. Bem-humorados, generosos e, por vezes, ferinos na medida, enfim, o melhor da literatura brasileira now.

Flavinho, Ju Dondo, Leo, Talitinha, Carols, Lia... – trabalhar com vocês faz o meu dia mais feliz, parece clichê, mas é verdade. E me justifico lembrando que o clichê já foi uma ótima ideia, tão boa que passou a ser reproduzida em massa.

Paola – amiga que sempre me oferece um ano de pleno de aventuras jornalísticas e que está sempre presente, por telefone, e-mail e até pessoalmente.

Dri Yazbek, Emerson, Antonietta, João, Mário... – turma que provou que é possível fazer um ano diferente sim, a despeito da repetição do slogan por uma emissora de tv, apenas se deixando levar pela vontade de se contar uma boa história.

Queridos leitores Gente que eu fui conhecendo e me conhecendo aos poucos nesses meses, obrigada mesmo. Vocês humanizam essa blogosfera e me dão gás para continuar.       
  
Se alguém não entrou nominalmente na premiação, vai ver está camuflado em algum dos textos, confira e depois me diga.

E cuidado com o que desejam porque espero que todos os seus pedidos se tornem realidade em 2011.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A gaveta cheia


Tem coisas que a gente tenta evitar a vida inteira e encontra soluções temporárias, mas chega um momento em que a decisão se impõe. Era hora de Alberto morrer, Cristiane percebeu.

Porque ele era homem. Muito homem. Daqueles que mulher não resiste. E não só ela, esposa: todas. Começava com um sorrisinho, uns tapinhas nos ombros, um convite para uma cervejinha e lá estavam elas abrindo os dentes e as pernas. 

Sua política era, primeiro, avisar. Claro, uma ou outra temia a Deus e tomava de novo o rumo do culto de fundo de quintal quando o nome do santo pastor era invocado, mas a maioria não. A maioria delas não estava nem aí pra nada que não fosse o Alberto. 

A mais antiga na lembrança era uma prima, Fabíola, que se ofereceu para cuidar do bebê enquanto Cristiane ia pro supletivo à noite. Num dia de aula vaga, ou prova – não se lembra bem – saiu mais cedo e acabou notando os dois de risadas e bitoquinhas no sofá. Comentou com ela, como quem fala do tempo, sobre o caso da finada Patrícia, que havia sido cortada com cacos de vidro pelo marido até a morte porque andava de fricote com o Feliciano da feira.

Sutileza não é o forte de biscate. Mas isso, Cristiane percebeu à noite quando viu que os dois tinham se permitido logo explorar cômodos mais íntimos, confiantes de que aula vaga  todo dia não acontecia em supletivo.

Entrou pelos fundos na casa do pai e foi ao quarto de ferramentas, pegou uma foice de cortar cana e escondeu numa rua escura, por onde Fabíola teria que passar. Chegou em casa e tocou a campainha, disse que tinha perdido a chave. O marido apareceu, meio afobado, justificou a demora em abrir o portão por estar no banheiro enquanto a outra trocava as fraldas do bebê.

O corpo foi encontrado semanais depois, por abutres e cachorros, no meio de uma horta abandonada.

Já tinham sido tantas que quase perdia as contas. De cada desaforada guardava uma lembrancinha: um brinco, um colar...  Até usava alguns, mas Alberto não notava. A gaveta da cômoda, que tinha lascas soltas por todo lado, já estava cheia, logo não caberia nem mais um pingente.  É, ele tinha que morrer, não tinha outro jeito – Cristiane sabia.

A dúvida era como: veneno, facão, encomenda... Tinha experiência em tudo quanto era jeito. Certeza apenas é de que iria transmitir tudo ao vivo, pela internet.

Cansou de sutileza.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Conselho de amigo


Apenas para o meu bem fui proibida de ouvir minha canção preferida. A recomendação do amigo, cheio de boas intenções, era que assim deixaria de me lembrar do meu ex amor. Contrariada, obedeci – já havia passado do ponto de recusar ajuda. Imediatamente, a voz sabotadora de Luíza Possi começou a tocar em minha cabeça em um "repeat" infinito.

Se entendesse de medicina poderia cogitar que fosse meu organismo rejeitando aquela ideia estranha. Lembrei-me de uma tia que no período adolescência acreditava que todas as músicas de Roberto Carlos haviam sido compostas para ela.

Minha mente travou naquela música. Não que eu tenha algo contra. O meu humor reage imediatamente bem aqueles versos (“Você me faz bem/ quando chega perto/ com esse seu sorriso aberto...) . 

Mas ele tinha razão. Há músicas que nos prendem. Ou que deixam um gosto na boca. De vodca, de beijo na testa, de sal de lágrima. 

Foi numa dessas que enterrei minha melhor dose de Joss Stone. 

Antes que eu tivesse uma recaída, tratei de instalar um antivírus. Toquinho. Sheryl Crow. Daniela Mercury. Green Day. Mombojó. Apocalyptica... E Diana Krall.

Loira, canadense, quarentona, cantora de jazz. Poderosa. Veio ao Brasil há pouco tempo... Guardem esse conselho pra vender depois: Diana Krall.

Os acordes de piano de “Just the way you are” são apenas meus. Sensuais, desconfio que já procuram alguém para que eu compartilhe a posse.

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Desculpem o sumiço crônico. Excesso de trabalho, mesmo.

Agora, melhor adaptada à nova rotina, pretendo continuar escrevendo.

Beijos

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Insônia da esquerda


Estou cansada demais para que meu cérebro articule tanta informação ou cogite abrir meu outro olho. É noite. Ouço vozes, tem um pouco de luz no quarto. A cama vazia ao meu lado. Desisto e durmo. Chico passou horas em claro de novo, sentado na beira da cama, vendo alguma reprise na tv. Irritado, mas sem querer me acordar.  

Pedi que fizesse acupuntura, mas ele tem medo de agulha. De acupuntura. Não quer tentar nem as sementes. Ofereci remédios, mas ele acha que nada que não tenha tarja preta funcione. Pensei que poderia ser a academia que ele faz à noite. Mas era culpa burguesa.

Tem uns pesquisadores da Universidade John F. Kennedy (EUA) que aferiram que pessoas da esquerda dormem menos, de forma pior e com sonhos bizarros de bônus, coisas como mortos-vivos e transas selvagens. Estava tudo explicado.

Eu poderia jurar que o Chico votava no Democratas desde bebê. Talvez vote mesmo mas, no fundo, queria votar na Dilma. Aqueles terninhos de gola chinesa que ela usou nos debates o seduziram. Socialismo de mercado. Crescimento asiático. Jamais teria saído com ele se soubesse desse lance esquerdista.

Todas aquelas discussões, ele tão enfático sobre a natureza criminosa do MST, a corrupção endêmica no governo federal, a falta de um verdadeiro capitão Nascimento para limpar as favelas, o voto de cabresto que é o Bolsa-família.

Minha família é de esquerda. Meu pai é metalúrgico. Votamos tantas vezes no Lula, que acabamos colocando ele lá. Dormi no ponto. No ponto, no ônibus, na cama. Durmo praticamente em qualquer lugar. Nada me faz perder o sono, na verdade. Eu sou de direita?

Geralmente, digo social-democrata. E não me venha com esse sorrisinho na cara. O que está em jogo aqui é que sou uma mulher que precisa e acredita na alternância de poder. Mas com os de direita, sonhando com a esquerda, não sei. Perco a fé no meu próprio governo.

Para quem quiser conferir a insônia da esquerda, clique aqui.

domingo, 24 de outubro de 2010

Aposta

Depois daquele pé na bunda, só lhe restava ir à lotérica. A vendedora sugeriu um dos bolões da mega-sena. Cotas a R$ 10 e R$ 30. Comprou uma de cada. Olhou na bancada e resolver tentar tudo: lotomania, timemania, dupla sena, federal, loteca... Não tinha cabeça para pensar em tantos números e combinações, deixou que a máquina fizesse a sua sorte.

Ela apenas achava justo que algo desse certo. E, certamente, preferia sua parte em dinheiro. Não precisava ser muito. Qualquer R$ 5 mil já resolvia. Mas Deus poderia ser justo e lhe pagar os juros. Assim, por baixo, devia a soma devia girar entre uns R$ 7 ou R$ 8. Milhões.

O problema é que Deus era um caloteiro. Ele permitia que as pessoas colocassem as dívidas na conta dele, as menores, as maiores e nada de comparecer. Todo poderoso, o SPC e a polícia não o alcançam. Ou não se dão ao trabalho. Talvez Deus seja apenas um viciado na bajulação e quer só curtir.

Não sabia de ninguém a quem Ele tivesse pago o que fosse. Ele devia ser mais como uma máquina caça-níquel, umas luzes coloridas, muita gente tentando a sorte, perdendo seus tostões, e um desavisado ou um viciado que leva uma porcentagem da bolada.

Passou dias sem dar pelo frasco verde de xampu na prateleira do box. De manhã, colocava o primeiro sapato que via, o mesmo que tinha tirado antes de deitar. Nem queria saber o que podia ter naquela sola. Comeu miojo com ovo no jantar por uma semana. Não acreditaria que tinha feito nada daquilo se lhe contassem anos depois.

Nice foi fazer a faxina do apartamento. O acordo é que viesse uma vez ao mês, limpasse os vidros, os azulejos e passasse as camisas do André. Encontrou na mesa, sob pilhas de envelopes, folhetos de comida e revistas, os recibos dos jogos. Prendeu-os com um imã na geladeira para que a patroa os visse assim que entrasse.

À noite, quando chegou, se surpreendeu mais com a honestidade da Nice do que com seu próprio esquecimento dos jogos. No computador, conferiu um por um. Nada. Três pontos em um. Um ponto onde não devia marcar nenhum, ou fazer vinte. É o que dizem: a casa sempre vence.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Noite do elefante


- Qual é, Marcelo, tem que ter despedida! O que tá pegando?
- Beto, o que tá pegando é que eu não vou estar pegando. Vou ter minha despedida na noite de núpcias! Não sei como, mas tenho que impressionar a Ângela, cara.
Durante os oito anos de namoro, Marcelo sempre serviu um arroz com feijão dos mais bem temperadinhos. Como sempre ouviu que as mulheres valorizavam a noite de núpcias, calculou que, no mínimo, deveria servir à francesa na lua de mel.
Beto sugeriu que fossem à banca de jornal. Voltaram com pilhas de revistas femininas. De onde concluíram que as mulheres eram loucas por artigos de sexshops. Vibradores. Gel do beijo, que esquenta, que retarda – esse podia dispensar de cara. Livros de massagem. E roupas sensuais. A vendedora ajudou. No final incluíram uma cueca de elefantinho no pedido.
Despedida garantida, Beto foi direto contar à galera, combinar logo o bar e quais meninas contratar. Marcelo foi pra casa, estudar os livros de massagem e experimentar de novo a tal cueca.
Não iria admitir pra turma, mas não sabia o que Ângela ainda estava fazendo com ele. A mulher era um clone da Penélope Cruz e ele do mais orelhudo dos cassetas.
O discurso do padre emocionou até o Beto, que ainda andava meio tonto da bebedeira da véspera. A festa avançou a madrugada, mas os noivos se recolheram por volta das 3h da manhã.
Ela decidiu se trocar no banheiro da suíte do hotel. Ele pegou seu kit sensual, reviu suas anotações da massagem e se vestiu. Sentou na cama e aguardou. Ângela abriu a porta. Tinha cheiro de pêssego e vestia uma curta camisola branca. Estancou na porta do toilete.
Marcelo ficou assombrado com a mulher. Uma assombração super positiva, que ela percebeu pelo movimento da tromba.  Movimento que também atingiu as orelhas do elefante, tão similares às de Mário. Ângela não conseguia disfarçar seu estranhamento. O olhar dela, de repente, captou os géis e os óleos de massagem no criado mudo. Nem assim se recuperou. Foi lentamente até a cama e beijou-lhe a testa:
- Nossa, estou cansada! Vamos deixar isso para amanhã. Boa noite, amor. 

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O caso da bola e do lustre




- Bola!
- É lustre.
- É bola.
- É lustre.
- Bola!
- Lustre.
- Bola!
A discussão entre a criança e a mulher já durava uns dez minutos nesse “é”, “não é”, quando eu, que tentava dormir no quarto ao lado, decidi intervir.  
- É bola, não vê que é bola, mãe?
Lucas sorriu quando me viu em sua defesa. Minha mãe alegou que só queria ver até onde ele iria com aquela discussão. Como onde? Até sempre. Em seus um ano e oito meses nunca o vi renegar uma ideia.
O lustre do quarto de dona Patrícia, minha mãe e avó do Lucas, é uma peça redonda de vidro trabalhado. Tem pequenos gomos, como uma bola de futebol estilizada. A luz é de um tom amarelo-avermelhado. Lucas, dono de bolas de tênis, de capotão, daquelas vendidas no posto de gasolina e sei lá mais quantas, sabia definitivamente o que era uma bola.
- É uma bola que brilha, Lucas, expliquei.
Ganhei o coração do garoto.
- Que brilha?
- Isso, uma bola que brilha.
Ele ainda ficou experimentando a palavra nova - “brilha” – por alguns minutos. Depois, satisfeito, foi brincar de olhar-se no espelho.
Desde que aprendeu a falar, Lucas tornou-se o meu guru. Cada descoberta sua me provoca. O lustre é uma bola que brilha. Como alguns sentimentos, de uma essência tão familiar, e revestidos de algo que seduz e cujo nome nos escapa. É uma bola, de fato, mas uma bola que brilha.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A visita do morto

Vindo, não sei de onde, pousou um pedaço de papel sobre o meu teclado. Nele o telefone de Rafaela, minha ex. Sogra. A letra era minha. Óbvio que era um sinal. Mas ninguém me contou.

Limpava a estante quando aconteceu. Desconfio que estivesse infiltrado entre os livros e cds velhos. Programado para dar seu rasante dois meses antes da aparição. 

Ele voltou. Solteiro. Disfarçava, puxando assunto. E eu que o dava por morto e que respeitava os espíritos, não os amolando por tão pouco. 

Não o matei. Foi ele que se matou sozinho. Senti raiva porque não tive culpa. E adoraria ter tido. 

Contei pra Carol, uma amiga, que me disse que o importante era saber o porquê de ele ter voltado. Não poderia me interessar menos. Mantenha uma distância cética, ela recomendou, mas descubra, senão ele encosta e não vai embora.  

Já vi muito filme de fantasma. É só ignorar ou virar amiga como no Harry Potter. E se não me disse quando estava vivo, depois de morto é que não me interessa. Se a notícia é fria, pode muito bem esperar eu chegar lá pra me dar a letra.  

Mas depois da conversa com a Carol, me senti na obrigação de lhe contar o tal porquê da visita. Perguntei. Ele disse estar perdido. Transitando entre um mundo e outro, um dia me viu na rua e me seguiu. Não queria incomodar, apenas saber como eu estava.  

Aposto que a Carol o classificaria como fantasminha camarada. Ainda não sei. Não sou muito dada ao perdão. Dizem que isso poderia libertar a alma dele, mas acho que isso ele deve desenrolar lá com Nosso Senhor. Senti um pouco de pena. Mas já faço muito de não chamar um exorcista. Que vá logo. O tempo urge e a fila do juízo final é grande.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

No forno


O ciúme estava muito líquido, como a massa do bolo. Desconfiou que devesse pôr mais farinha, mas era a primeira vez que fazia aquela receita. Teria que recalibrar tudo: ovos, açúcar, suco de laranja. Se mudar agora, como vai saber como deveria ser o bolo? Fofo é que não deve ser. “Deixa, vou pôr no forno mesmo assim”.



Ele foi esquentando, esquentando, até sair como vapor. Pelos poros. Depois pelos olhos. Tanta pressão a inspirou a cozinhar, ainda que fosse naquela cozinha alheia. Algo suave. Doce. E que ninguém tivesse feito antes.

Era de casa, mas mal sabia onde ficavam as coisas. Sentia falta da própria cozinha, com sua lógica orgânica. Sorvete no freezer, creme de leite na despensa e o caderno de receitas na segunda gaveta da pia.

Isso estava superado. O importante agora era que o bolo finalmente ficasse dourado. Nada mais quieto que um bolo no forno. Adivinha-o borbulhando sob a fina crosta. Ninguém cozinharia para Marcos impunemente. Um dia era uma torta, no seguinte oferecia um bombocado... Decidiu que não haveria para a outra o dia do bem-casado.

Meia hora havia se passado e o bolo continuava branco. Sem cheiro. Voltou ao computador atrás de outra receita. Quem sabe algo mais afrodisíaco. Triste seria jogar toda uma receita fora.

Doce e ácido, o perfume foi se intensificando até penetrar o quarto. Ela ainda esperou mais alguns minutos antes de desligar o forno. Preferiu deixá-lo no calor enquanto preparava a calda. Espremeu o suco de uma laranja e adoçou. Ficaria bem molhadinho. Não havia nascido ainda mulher capaz de roubar um homem pela barriga de uma legítima Teixeira.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Uma noiva que não pede presente


Mais uma amiga que se casa. Também ela quer se seu momento seja inigualável. Tímida, mantém tudo em segredo. Inclusive o que quer ganhar de presente. Nós, os convidados, estamos em pânico e por um motivo bastante original: um casamento que não tem lista.

Sei que há casos em que não é preciso dizer. Conhecemos bem a pessoa, seu gosto, e por isso reconhecemos na vitrine, ou no coração, o que tem que ser.

Admito que causar surpresa é uma delícia. Um dos últimos presentes que dei foi assim. Exigiu uma mega operação, semanas de planejamento, apoio logístico, consulta às preferências do zodíaco e até uma ousada manobra de improviso. Foi a primeira vez que consegui comprar algo e segurar até a hora exata, mais de uma semana depois. Acabei presenteada com um dos melhores sorrisos que já recebi.

Porém, há momentos em que se deve abrir o jogo. Ou, pelo menos, dizer se está quente ou frio. Adoro dar presentes, mais do que receber. Todo o processo de imaginar o que combina com a pessoa e que tenha, ao mesmo tempo, algo meu. Só que investigar a demanda de uma noiva que mora a 100km de distância e já tem casa montada é tarefa para um verdadeiro Sherlock Holmes.

Um amigo aposta que deveríamos dar dinheiro. Que ela saberá dar o devido destino aos nossos votos. Protesto: casamento de amiga não é aniversário de afilhado do namorado.

Dinheiro não é presente. Agrada, até, mas não é a mesma coisa. Quem dá corre o risco de ser vítima do outro mais pobrinho que compra algo singelo, mas leva o obrigado mais sincero.  Bem feito! Abuso do poder econômico tem que ser mesmo coibido.  Só falta desenvolver uma justa medida contra aqueles que se recusam a dar uma mísera pista.

Visito sites e me decido por um edredon de milhares de fios egípcios. Para depois reconhecer que lá não faz frio o suficiente para usufruir o luxo. Hipótese descartada, minha mãe sugere sua opção coringa: um jogo de panelas. Deixo isso para quem mal a conhece e quer levar no tapetão.

Aparelho de jantar! Com 20, 30, 42 peças. Descarto os com cara de casa da vó. Apaixono-me completamente por aquele que parece saído de um filme dos anos 50, para me encantar um clique depois por um preto anguloso pós-moderno.

Lembro que o fogão dela pede clemência e lá vou fazer o orçamento. Tentar uma promoção amiga com primo convenientemente empregado nas Casas Bahia.  Mas fogão é presente de mãe. Primo, quero um presente de amiga, tem?

Não quero ser útil. Quero sonhar junto. O vestido. A festa. A cortina da cozinha. Preencher o desejo da noiva com um pouco do meu. Dar-lhe algo do lugar onde um dia irei morar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dia de estar mais bonita


Segunda-feira, Alessandra desperta como sempre às 5h. Pega da poltrona a roupa já escolhida. A blusinha florida é o anticlímax da produção, cujo ponto forte será a calça que promete levantar o bumbum. Tinha que impressionar, não o chefe, ou os colegas, mas um cliente.

Era um cara que aparecia todos os dias. Pedia pizza portuguesa, coca-cola e um maço de cigarros na saída. Ou um x-tudo e uma sobremesa. A caixinha de Alê era o “obrigado” com sorriso que ele lhe deixava todo dia ao fim do almoço.

No banheiro, os potes de creme aguardavam a chamada. A máscara para cabelos. O esfoliante facial. A maquiagem e o protetor solar. Meia hora depois, a porta abriu-se e libertou a nuvem de vapor. Borrifadas de perfume importado – de terça pra frente um bom nacional daria conta. Por fim, os brincos e a pulseira.

Tudo isso porque era segunda-feira. Fazia dois dias que não o via. Saudade só contida porque tinha prazo. Curto. E por saber que a empresa dele, como aquela padaria, não emendava os feriados. Se sempre caprichava, segunda exigia mais. Sabe lá com quem ele esteve no sábado e domingo.

Ps. Embora eu discorde da explicação, há cientistas que garantem que as pessoas são mais bonitas na segunda. Veja aqui.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dia 2

Ela não queria ficar e o esperar. As pessoas já tinham ido. Na verdade queria sim, queria muito. Esperou tanto tempo e quando ele chegou, o sorriso iluminando o rosto, ainda com a camiseta molhada da chuva, já começou a lhe apressar. Era tanta felicidade, que mal cabia e ela só queria ir, já ter ido. Porque não sabia o que falar, queria colocar as sensações no lugar, o coração dentro do peito, ou da bolsa, do sapato, de qualquer lugar que não caísse sem ela notar.

Abobalhada, tentava responder o que ele lhe perguntava. (Onde estavam suas coisas?) Queria ir para onde pudesse gritar que já não sabia mais o que fazer de si. Que o quer. Apenas isso: quer muito. E não aceita não como resposta. Nem “tem, mas acabou”. Fez reserva até.

Acredite. Abra a agenda dela. Está ali o dia do único encontro. E o do desencontro. E o do atropelo. E aquele em que soube. Teriam sido marcados?

Conclui que é hora de rasgar tanta coisa que já foi. Que não diz mais nada de ninguém aqui. A ninguém.

Ele já está ali no carro lhe apressando de novo. Falando do resultado do jogo. E para não esquecer do guarda-chuva da Clarinha. Não, não esqueceu, está tudo aqui. Menos ela. Que está não sabe bem onde. De súbito, seu pensamento clareou: “Talvez em você”.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Verso e costas


Bento colocou uma placa na entrada do estúdio: “Não tatuo nome de mulher – exceção apenas para nomes de mãe e filhas”. Queria assim se ver livre de publicar a ilusão ou a inocência alheias. Ainda assim, a corrupção o espreitava. Não ligava se a moça estivesse presente. Se fosse bonita ou já estivesse morta. Não, não e não. É preciso um mínimo de ética nesse meio. Até que apareceu um fulano. Não queria nome de mulher. Foi justamente por isso que escolheu o estúdio, explicou. “Põe aí, em letra bonita: ‘Amor, só de mãe’ aqui nas costas”.



Era miúdo, careca e via-se que andara malhando para ganhar corpo. “Amor, só de mãe”... Lamentou não ter pensado naquela exceção. Quando criou a placa tinha acabado de tatuar um manezinho que lhe pedira para escrever “Francilangela” em estilo gótico nas costas. O cara curtia vampiros. Ou era emo. Bento não sabe a diferença. Queria impressionar a namorada que ia ser modelo em São Paulo.  Bento aposta que essa nunca mais voltou à terra. Pra não dizer que mudou de nome também.

Houve um outro cara que ele recusou. Queria tatuar “Eu sou muito foda”. Nas costas, claro. Porra, ele era tatuador, não publicitário. Não fazia anúncio de idiota. Quase mudou de ideia quando pensou que na verdade seria um ato altruísta, quase um serviço público. Seria como uma faixa indicando um caminho alternativo para o motorista: evite cara mala, tente o da esquerda.

Era tatuador, porra. Não terapeuta. Mas pelos negócios não podia deixar alguém sair de lá com aquilo. “Legal, né? Foi o Bento que fez”. Que merda, era só no que conseguia pensar com o sujeito ali. Agora, o cara é um fracassado que não pega ninguém e acha bonito contar pra todo mundo? Vai ver era algum tipo de experiência catártica. Cara, estava mesmo virando terapeuta, pensou.

Ligou o botão do “foda-se” e ia fazer o “Amor só de mãe”. Daí a consciência fez mais peso. “Olha cara, nas costas não faço, falou? Se quiser, vai no braço”. O cara ficou satisfeito, “Entendeu! No frio vai ser só andar com a manga dobrada pra galera ver”. Que mãe mereceria mais a tatuagem do que aquela?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Pedra


Fama era o objetivo de Marina na vida. Optou pelo jornalismo, caminho, no mínimo, controverso para esse fim. Entrevistaria celebridades, desvendaria escândalos, divulgaria atrocidades contra os direitos dos mais humildes. Seria um combo de Glória Maria com Caco Barcellos. Escreveria livros. E daria muitas entrevistas: Marília Gabriela, Jô, Faustão. Não fosse por um detalhe: ela só sabia falar por escrito.

Marina já tinha concedido entrevistas antes. Sabe, fonte ideal? Já a tinham procurado para falar sobre sua experiência como a única mulher vip na balada gay, sobre sua opinião quanto à proibição de caminhões na marginal Pinheiros e até sobre a queda do avião que não matou a Xuxa. Tudo por e-mail ou MSN.

Falar por escrito? Bem, não pode ser sério – pensa você, leitor. Mas é a absoluta realidade. Veja que o baque aconteceu em uma entrevista de emprego, quando o entrevistador saiu do roteiro estabelecido pela convenção social: nada de perguntar sobre quais seriam suas expectativas na nova empresa, de parecer ter lido seu currículo, ou de lhe contar o que afinal fazia um jornalista na área de culinária corporativa.

Por que você continua no jornalismo? Cite uma matéria de nossa revista que você publicaria em forma de pirâmide. Por que você saiu de seu antepenúltimo emprego? Sócrates: quem, o quê, como, onde e, principalmente, por quê? Você ainda mora com sua mãe?

Marina queria protestar: era permitido sair do combinado apenas em entrevista com políticos pegos em áudio e vídeo cometendo flagrante delito, jamais esse último recurso deveria ser admitido em uma questão tão protocolar quanto uma entrevista de emprego. Será que aquela caneta azul ali no canto superior esquerdo da estante, diante do manual de redação, não seria uma microcâmera?

O olhar dos recrutadores era tranqüilo. Marina suava. Analisou que eles só esperavam que ela lhes desse a senha do capitão Nascimento (pede pra sair!). Resistiu. Mais ou menos. Não conseguiu elaborar a tempo suas respostas. Foi resmungando pelo caminho que aquela entrevista devia ser feita por e-mail. No elevador, ainda sob forte emoção, resolveu denunciar via twitter, mas saiu apenas um clichê: puta falta de sacanagem. Foi sua última entrevista ao vivo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Enrolada

Gisele não usa meias brancas. Nem sapatos pretos, exceto se forem de verniz. Lustrosos como maçã do amor. As vendedoras de calçados já viram muito, mas não tudo. E isso, meias mais sapatos, as chocavam no mais íntimo do ser.

Era inverno, então ela abusava das meias colegiais, coloridas, sempre. Por fora, era o signo da executiva. Calça cinza. Terninho bem cortado. Pasta preta. Mochila com notebook. All-star branco no metrô. Sapatos toc-toc no escritório.

Os sapatos nunca pretos eram uma excentricidade que passava desapercebida pela corporação. Até porque ela os compensava com modelos azuis, prata, chumbo, cor de whisky, de caramelo, beijinho e coco queimado.

Mas as meias, se reveladas, contariam outra história. A cor era de um laranja hare krishna. Indiano também era o padrão da estampa, com azul, marrom, tons de verde. Nada a dever para a figurinista de Caminho das Índias. Na prática, ela vive uma novela que já terminou.

Gisele argumentaria que foi ela quem lançou tendência, pois comprou o par antes de Glória Peres redescobrir as Índias. Na verdade, adquiriu as peças em uma viagem à tradicional Campos do Jordão. Pior, é apegada ao passado.

Ou é hippie. As meias denunciam que ela medita nas horas vagas. Lê livros de sexo tântrico. Pode, por Deus, até praticá-lo! Se louva a Krishna, tem tendência a torturar sua futura nora durante o preparo do chai. Se não for nada disso, então, é uma imatura, se recusa a crescer, pois não está a imitar aquela garota de óculos do Scooby-Doo?

A mãe de seu futuro namorado anotará as meias que ela usar. Ficará atenta toda vez que Gisele cruzar as pernas para, na subida inevitável do tecido da calça, flagrar o delito futuro. Sogra brasileira é versada em najas pseudonacionais.

Todo o seu mundo acabaria. Por apenas duas meias. Meias pacíficas, apolíticas – o Buda também vestia laranja. Meia sem dinheiro. Sem chaminé. Estaria acabada se descobrissem suas meias. Ao mesmo tempo, não podia livrar-se delas. Eis o que pode se tornar um dilema shakesperiano na vida de uma mulher de vinte e pouco anos.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Condenado no batismo


Olívia mantém um blog. Nele escreve cartas abertas. À mãe. Aos irmãos. Aos amigos e amores. Aqui republico uma que, de tão singular em sua franqueza, achei que merecia ser compartilhada. Nela, Olívia explica como o Gabriel se queimou com ela. Antes mesmo de saber articular qualquer palavra.


 “Oi, querido,

Tudo bom?

Você tem me ligado em casa e no celular, deixado recados no meu facebook ... E eu tenho agradecido sempre tanta gentileza. É tudo muito fofo, mesmo. Mas preciso lhe falar a verdade: não pode haver nada entre nós. 

Sei que você ainda não me propôs coisa alguma. Apenas tem me convidado para ir tomar uma cerveja, ou ao cinema, programas que eu poderia encarar como algo normal  entre amigos. Mas, eu estaria me fazendo de boba.

É que não posso ter nada com alguém com o seu nome. Tenho uma certa dificuldade com caras  com nomes iniciados com a letra “G”. Você seria o terceiro Gabriel na minha lista, então, não.

Meus piores traumas vieram de gente com nome dessa letra, acho que a vida poderia ter ficado só na tia Giselda, do primário, que me puxava os cabelos quando eu errava na tabuada. Mas, piorou de maneira exponencial com vocês, homens. 

Gilberto queria sexo sem nota. Cria do Serra que sou não dava para abrir mão da nota paulista. Guilherme não sabia beijar, não aprendeu nem com aula extra. Gustavo roubava minhas lingeries para vestir – descobri quando uma amiga me enviou as fotos ‘sensuais’  do perfil ‘b’ dele no facebook. 

Terminou tudo bem entre mim e o primeiro Gabriel. Achei que a maldição do G era coisa da minha cabeça ou que tinha enfim acabado. Até que ele me viu com o segundo Gabriel e o roubou na maior cara larga.  Então, posso lhe passar o telefone do casal de Gabriéis e assim poupamos tempo. 

É uma pena, se você se chamasse Bernardo, em vez de Gabriel, estaria tudo bem. O alfabeto é grande e não há ninguém com B na minha lista.

Sinto muito,

 Um abraço,
Olívia

Ps. Aviso que não vou mudar de idéia, desta vez nem Shakeaspeare me dobra, grande hipócrita! (“Se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume” – William Shakespeare)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sintonia


A comunicação entre máquinas e homem anda cada vez mais fina. Achei que teria que esperar até os carros voadores serem realidade para poder achar graça nas promessas da tecnologia. Mas, não.  Estamos juntos, meu celular e eu, há quase quatro anos e ele pegou meu jeito. Até recusa as ligações que sabe que eu não gostaria atender.

Ele simplesmente não vibra com alguns chamados. Depois, todo sonso, manda um envelopinho assim: “ligação perdida de 11 555-5555” ou “cinco ligações perdidas de Felipe-Academia”. É melhor que muita secretária real por aí.

Por outro lado talvez ele tenha sentido o peso dos anos e resolvido se precaver, oferecendo-me um mimo especial. Ele já está bem velhinho, passou por muita coisa. Certa vez, mais depressivo, até pensou em suicídio, caindo escadaria da Lapa abaixo. E ele tem ficado meio desligado, às vezes, sabe?

Daí andei, discretamente, claro, procurando por um substituto. Igual quando a mãe da gente pensa em dispensar a empregada já aposentada e faz saber às amigas que precisa de alguém de confiança. Andei navegando à procura de um modelo bem moderno com tela com comandos que obedecem ao toque, rádio, bluetooth e, principalmente, memória de vários gigas.

Eu não queria fazer isso, de verdade. Mas vai que ele confunde o “Felipe-Academia” com o “Rodrigo-Raj-Caminho das Índias”? Tenho me sentido muito culpada com essa história toda. Como se traísse alguém da família. Mas não posso me arriscar tanto assim, e se o Rodrigo liga mesmo?

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Amor à bola

Parem a copa. Eu já sei o que é escanteio. Gritei, ao mesmo tempo que os cronistas, que o segundo gol da Inglaterra contra Alemanha entrou bem uns 40 centímetros. Picareta! O goleiro fingiu que defendeu e repôs a bola em campo. Santa mãe do bandeirinha. Pois eu vi! Domingo, 11h da manhã. Eu que não entendia de futebol. Até você não ter outro assunto.

Também já sei o que é tiro de meta. Quem é o Özil. E o Higuaín. E que o Kaká está com o capeta. Pronto. Agora é minha vez, né?

Minha vez. Estou com a mão esticada há um tempão. Quero conversar contigo. Até de futebol. Ou você acha que aguentei tanto Galvão Bueno por esporte?

Mas aconteceu de novo. Eu já devia saber. É a sua jogada ensaiada. Primeiro foram os Beatles, que eu sempre achei que existiram para empatar o talento do John Lennon. Depois o curau de milho verde. E agora o futebol. Se confesso que é por você, lá no fundo tem algo sussurrando que não, que não é mais só você, que também sou eu. Um “nós” tremulando no ar.

Meus irmãos não me reconhecem. Minha mãe cantarola junto o “You say Yes, I say No” tocando no computador.  E eu torço, em silêncio, pela Alemanha. E pela volta da Libertadores.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Premeditação

Ela levou horas para escolher o visual certo para hoje à noite. Checou a maquiagem no espelho do hall. Voltou à cozinha, abriu o armário e tomou duas pílulas azuis com coca-cola. Retocou o batom, arrumou o cabelo e estava pronta para sair.

Sérgio com certeza iria. Ela havia decidido que daquela noite não passaria. Conseguiria conversar algo conexo. Por isso as duas pílulas azuis. Não era viagra. Se fossem postas lado a lado, seriam tão diferentes quanto um óvulo e um espermatozóide. A dela era enorme, a deles pequenina. Eram pílulas de passion fruit, cujo nome destilado de ironia é maracujina.

O coração batia rápido só de pensar no encontro. Quase estourava o peito. As pernas tremiam à iminência dos passos porta afora. Ela já estava ligada demais. Tinha medo de falhar. De novo. Porém, havia riscos. Sabia que se errasse na dose poderia dormir em plena mesa do bar e acordar com os olhos borrados de vergonha e rímel.

Por um segundo pensou que seria divertido trocar as pílulas azuis do irmão pelas dela, desatento que era, ele nem notaria. Mas não podia brincar assim. Simplesmente porque não tinha moral nenhuma.

Estava novamente à porta quando decidiu voltar. Abriu o bolso invisível da bolsa e lá muquiou a cartela de comprimidos, junto com o RG e uma folha de cheque. Foi então que abriu um sorriso, inesperado até para si própria, e pegou um pacote de preservativos com sabor de morango. Calma, sim, morta não.

sábado, 12 de junho de 2010

Movimento pelo ludismo no amor



Chega de e-mails e torpedos. Qualquer meio de comunicação surgido após a invenção do fogo deve ser sumariamente descartado na área afetiva. O que inclui das cartas de amor aos sinais de fumaça, definitivamente.

Cartas de amor, aliás, deveriam ser sumariamente controladas. Só deveriam ser escritas à mão. E à tinta. Branquinho nem pensar (o horror, o horror!), nisso é preciso dar razão à dona Maricota, lá da sua 5ª série.

Não é porque as cartas de amor sejam em si ridículas, nem os e-mails, ou os torpedos. O excesso de tecnologia é que não tem facilitado em nada esse aspecto da nossa vida.

Imagine você sendo Balzac. Com todo seu talento escreve à condessa X. A carta leva onze dias para chegar, isso pra não mencionar o tempo de escrita a bico de pena. Você, Balzac, engenheiro do amor, represou o sentimento para que ele não virasse uma enxurrada de palavras desconexas que afogasse sua amada. Conseguiu gerar energia suficiente para aquecer um coração a onze dias de distância por correio montado.

O problema é que o mundo está cheio de mestres de obras do amor. Gente que não tem condição. Daí constroem-se, à velocidade de torpedos, puxadinhos sob os morros, que tremem ao menor vento e não resistem às chuvas de verão.

Pedreiro amigo, admire a cachoeira. Leve sua amada para apreciar a natureza. Lá, diante das cataratas, fale tudo. Gagueje. Dê voltas, se preciso. Atire as máquinas longe, para sempre. Dê flores silvestres. Use as mãos! Castelos inteiros podem ser erguidos com ferramentas vocais e olho no olho.  E não haverá problemas de delay na resposta ou risco de a baleia encalhar no twitter porque tudo será, de fato, em tempo real.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Transformação


Aos 18 anos nem esperou a convocação do Tio Sam e se alistou no Exército. Cumpriu dois anos no Afeganistão. Não voltou para casa. Ainda não. Pegou um navio para correr o mundo, desembarcou por aqui. Numa sexta-feira de julho, ele estava no trem a caminho da Luz, em São Paulo.

Tinha os olhos muito verdes e o cabelo loiro ainda no estilo soldado, meio oculto sob uma touca, sua branquelice chamava a atenção. Tanto quanto o agasalho camuflado e a mochila de guerra, enorme até mesmo para os padrões daquela linha do fim do mundo ao Centro Antigo.  Ia em pé. Firme no chacoalha chacoalha da velha lataria.

Sentada em um dos bancos, viajava uma mulher morena de seus trinta anos. No frio paulistano, protegia-se com um casaco preto, blusa cinza e cachecol. Comum. Abriu a bolsa. Espelhinho em punho. Sacou a base. Líquida, rapidamente foi absorvida pela pele.

A atenção do soldado, então, desviou-se da paisagem (quilômetros de trilhos e prédios pichados à esquerda e à direita) para ela. O blush foi aplicado com leves toques do pincel. Um delicado tom róseo tornou-se perceptível nas maçãs do rosto. No soldado, a sobrancelha direita erguida sugeria alguma movimentação interior.

Em seguida um pequeno bastão, semelhante a um batom, foi aplicado nas pálpebras superiores. O lápis definiu um traço sutil junto aos cílios, para em seguida ser sublinhado por mais um pincel, desta vez com sombra discretamente colorida. Por fim o rímel, em várias passadas, ergueu os cílios.

Ele nem piscava. Não notou que assim destoava ainda mais dos outros passageiros, mas não teria se importado mesmo que percebesse. Ela renascia ali. Era uma mulher totalmente nova, insuspeita no ambiente semi-escuro. Bela. Estava fascinado, jamais havia assistido a alguém se produzindo.

O banco entre o soldado e a mulher vagou. Como ninguém se manifestasse, ele o ocupou. Ajeitou a touca. Abriu a mochila. Pegou um estojinho azul claro. Continha maquiagem. Tinha prestado atenção, com certeza agora conseguiria fazer sozinho.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Mudança

Devia ir embora de Parati, mas não tenho vontade. Por que não ficar? Fiquei. Cidade linda. Uns caiçaras musculosos de pé no chão. Tem um povo bonito chegando o tempo todo. Uns italianos bronzeados com a barba por fazer, tipo o melhor do mau caminho. Jesus usa Gilette Mach 3. Mas se eles forem mesmo o mau caminho, ok, monto minha barraquinha na beira da estrada.


Encontrei uma boa conexão wireless. Só consegui do lado de fora da pousada, é inverno e já é quase meia-noite. Sentei na namoradeira sob a jabuticabeira.


“Oi, Alice,


Tudo bom?


Por aqui não poderia estar melhor. Não volto. Não insista.


Escrevo para colocar você a par das miudezas do lar. Parece até que eu sabia, deixei tudo no jeito. Contas pagas na gaveta abaixo, entre os ossos da vovó e o tio Alfredo. Às vezes eu ainda me assusto. Mas é simples, não tem erro.


Beijos daquela que será sempre sua”


Vento sudoeste trazendo um friozinho. Esse tempo não se acha fora daqui. Úmido e escuro como sempre quis. Não resisti e respirei o mais fundo que pude. Não tinha medo de engasgar. No que eu abri a boca para aspirar o ar, algo viscoso desceu goela abaixo. É questão de acostumar, né? Aqui meleca é coisa normal.

* Esta crônica foi escrita durante a oficina de crônicas Tanta Ternura, ministrada pelo escritor Fabrício Carpinejar. No exercício deveríamos compor uma redação a patir de sete frases pré-determinadas.  Quem adivinhar leva um doce ;~)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Educação infantil



Meus pais erraram na minha educação. Erraram feio. Nunca brigaram na minha frente. Sequer discutiram até eu ter quase 18 anos. Não pensem que a maioridade foi o que garantiu o meu acesso ao mundo da discórdia. Não. O que proporcionou esse valoroso aprendizado foi um daqueles casos de família que é melhor nem publicar. Em dois ou três meses foi dada a matéria de uma vida toda. Enfim, graças a papai e mamãe cresci sem saber o que é uma discussão normal entre homem e mulher. Normal, pra mim, era sempre o clima ameno. Confusão apenas aquelas causada pelo filho que quebrou a boneca da filha. Ou da filha que pegou o mp3 do irmão sem pedir licença. O resultado é que cresci com ojeriza de briga de homem e mulher.

Saber que os adultos brigam é inevitável, se bobear a informação brilha em néon no inconsciente coletivo dos filhos. Se não, têm-se os vizinhos para fazer esse dado circular. É o som alto de um. A má-educação do filho do outro. A fofoca de uma doninha – nome que minha mãe dava às senhoras que cujo expediente era cuidar da vida alheia no portão. Papai e mamãe pareciam que nunca tinham sido crianças.

Então, ficou meio dito pelo não dito que briga era coisa de criança e que eles nasceram grandes. Gente grande, pelo menos gente grande de bem, atravessa a rua na faixa, sempre diz por favor, não fala palavrão e não briga, nem discute, entre si.

Eu cresci, mas fiquei gente pequena. Ainda acho isso um contra-senso desagradável, embora sem remédio. Deve ser por isso que vejo tanto adulto brigando. Devem ser gente pequena disfarçada de gente grande. Vai ver usam pernas de pau sob a roupa. Isso explicaria a postura insegura daquele cara com quem tenho que ter uma conversa séria. Mas se sou gente grande, por dentro, imagino que sou superior a isso. Que não tenho nada que discutir. Já está tudo claro e certo. Ele gente grande também, ou gente pequena disfarçada – essas sempre sabem quem é gente grande – já deveria ter entendido.

Mas não entendeu. Não vai entender. E eu que não sei brigar. Como adulto. Faltou-me o exemplo e hoje também me falta bibliografia. O caso é grave. Penso até em processar meus pais.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Um Fila

O que leva alguém a dar dois laços no tênis e continuar com cadarço suficiente para pisar em cima? Pior é que os dois laços estão quase se desamarrando. Pior ainda é sair com um cara que passado dos trinta ainda não aprendeu a amarrar os cadarços. Pior é achar tudo isso super fofo, como eu.

Esse tênis é cinza escuro com detalhes cinza claro. A cor foi um rasgo de originalidade: ele tem um par preto e outro branco. No sábado, a pizza é de frango com catupiry e no domingo é daquelas congeladas, de mussarela, comida no café e no almoço em frente a algum jogo na tv.

No dia seguinte, ele acorda atrasado e ainda com as meias de dormir, com um rasgo grande no calcanhar do pé direito, calça os tênis empoeirados que passaram o final de semana jogados sob o sofá. Pacientemente ele dá um laço, depois outro para reforçar e ambos terminam assim meio despencados. Engole o Nescau, sai correndo mastigando o pão com manteiga para não perder a lotação. Mas antes, ele me lança um beijo de despedida da porta.

Podem dizer o que quiser, que ele nunca vai crescer, que nunca vai ter emprego que sustente uma família, que isso não é jeito de tratar uma mulher. Mas aquele beijo, solto no ar, seguido por aquele sorriso que ilumina seu rosto sempre sério, é toda benção que preciso nessa vida.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Gola rolê, futebol e sabão de coco


Duas mulheres discutiam, no ônibus cheio, seus fetiches. Em alto e bom som proclamavam suas preferências quanto ao tipo de vestuário ideal para o sexo oposto. A primeira era de opinião de que todos deveriam usar calça de cantor sertanejo, assim agarradinha, para valorizar o derrière. Já a outra defendia que sexy mesmo era malha de tricô com gola rolê, sem nada por baixo. E esse “sem nada por baixo” era dito assim de um jeito que dava o que querer em quem ouvia. Gola rolê, quem pensaria nisso?

“Os ombros ficam mais definidos, o peitoral parece mais amplo... E dá um ar chique, né?”, continuou a segunda. “Ah, mas uma calça assim igual a do Daniel, nem sei...” – replicou a outra. Lá no fundo, uma senhora comentou a meia voz, com aquela que ia ao seu lado, que bons mesmo eram os shorts da seleção de 82. A se ouvir a voz do povo, a Vip deveria revolucionar seu editorial de moda com as tendências outono e inverno: calças sertanejas e malhas, pensa, algo assim meio Julio Iglesias no rodeio.

Os fetiches são mesmo coisa personalíssima. Um amigo, professor de literatura, sente arrepios com palavras. Raridades como acepipe, conjuminar, lupanar... Melhor parar antes que a censura me tolha o verbo. Tolher. Melhor não provocar.

Há quem tenha fetiche por um tipo específico. Caso curioso foi o do Marco Aurélio, que tinha fetiche por empregada doméstica. Começou quando ele, mal entrado na adolescência, notou a Ritinha, que já era praticamente de casa. Não se sabe até hoje quem começou, só que depois da Ritinha veio a Maria, e depois desta a Nice, e foram tantas que pode-se dizer que estava valendo qualquer uma com cheirinho de sabão de coco.

A coisa ficaria restrita aos quartinhos e mini áreas de serviço, até que já entrado na faculdade, Marco Aurélio passou a seduzir as faxineiras da república que dividia com os amigos. Verdade que eram umas senhorinhas que nem se lembravam direito o que era mesmo o pecado. Na época ele saía com uma morena que fazia Letras, moça romântica, que resolveu aparecer de surpresa, bem no dia da faxina, para uma namoradinha antes da aula. Escândalo armado e lágrimas vertidas, agora ele pensa que bom mesmo seria despachar a morena e ficar de vez, às terças e sextas, só com a dona Cleusa.
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