quinta-feira, 4 de março de 2010

Portabilidade



Cliente chega apressada ao balcão do Céu, companhia que oferece serviços de gerenciamento de vida pessoal em mais de setenta países. Bolsa enorme no ombro, pasta abarrotada, papéis e sanduíche na mão. O som dos saltos contra o piso chamou a atenção do segurança, "até que está bem conservada", pensou ele consigo. Outros clientes aguardam em fila e após cerca de quarenta e cinco minutos, em pé, chega sua vez.


Atendente: Bom dia, senhora, em que posso ajudá-la?


Cliente: Quero fazer a transferência da minha antiga personalidade para o meu momento atual.


Atendente: Ok. Qual o número do RG da senhora?


Cliente: Vinte e cinco, sete, três, três, quatrocentos e cinqüenta, barra xis.


Atendente: Estou vendo aqui no nosso sistema que a senhora já foi nossa cliente, mas agora está com outra operadora. Qual seria o motivo da transferência?


Cliente: Sinceramente, acredito que isso não seja da sua conta.


Atendente: Senhora, é nosso procedimento padrão registrar as razões desse tipo de solicitação. Não poderei estar lhe atendendo sem que isso seja realizado.


Cliente: Já fiz outras transferências antes e não tinha nada disso. Minhas razões são particulares.


Atendente: Desculpe, senhora, mas todas as transferências são feitas por razões particulares. Para prosseguir com o atendimento é preciso declarar o motivo específico do pedido.


Cliente: E o que vocês fazem com esse tipo de informação? É algo íntimo e que não é mesmo da conta de vocês.


Atendente: Tudo fica registrado no sistema, o que permite que a empresa possa conhecer o perfil dos nossos clientes e desenvolver soluções individualizadas às suas necessidades.


Cliente, batendo o pé e acendendo um cigarro: Soluções individualizadas, promoções! Quem me garante que isso não vai cair na internet?


Atendente: Minha senhora, não é permitido fumar aqui no atendimento ao cliente. A senhora pode sair e fumar ali fora.


Cliente: Olha aqui, fiquei esperando esse tempo todo e você ainda quer me interromper na minha vez? Você não tem como garantir que não vai ficar todo mundo sabendo, não é?


Um cliente da fila: Vá fumar lá fora, dona. A gente também quer ser atendido.


Cliente, apagando a bituca com o pé: Até parece que sou só eu que fumo por aqui. É minha vez, só saio quando terminar, diz para a fila impaciente. Que seja. Meu querido, quero porque agora estou com um bofe novo. Registre aí. Poderoso, chique, rico. E de noventa e seis a dois mil e um, quando eu saía com o Flávio Meira, tinha o tipo certo para namorar com esse homem. Tá anotando, aí? Eu era magra, não tinha fome porque amava. Era alegre. Lia muito Veríssimo. No JB, sabe? E era segura como a Susaninha.


Atendente: Que Susaninha, senhora?


Cliente: A Vieira, a Susana Vieira! Preciso voltar a ser aquela mulher hoje mesmo ou esse bofe me escapa. A fila é grande, meu querido. Serei eu mesma, só que a melhor eu para essa emergência. Mas que ninguém use minha personalidade de agora, viu moço? Vai que eu preciso. Quanto é mesmo?


Um comentário:

  1. Como eu já desconfiava muito boa. Ulm olhar acurado sobre a dicotomia social dessa sociedade viciada em portabolidade.
    Parabéns!

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