quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Insônia da esquerda


Estou cansada demais para que meu cérebro articule tanta informação ou cogite abrir meu outro olho. É noite. Ouço vozes, tem um pouco de luz no quarto. A cama vazia ao meu lado. Desisto e durmo. Chico passou horas em claro de novo, sentado na beira da cama, vendo alguma reprise na tv. Irritado, mas sem querer me acordar.  

Pedi que fizesse acupuntura, mas ele tem medo de agulha. De acupuntura. Não quer tentar nem as sementes. Ofereci remédios, mas ele acha que nada que não tenha tarja preta funcione. Pensei que poderia ser a academia que ele faz à noite. Mas era culpa burguesa.

Tem uns pesquisadores da Universidade John F. Kennedy (EUA) que aferiram que pessoas da esquerda dormem menos, de forma pior e com sonhos bizarros de bônus, coisas como mortos-vivos e transas selvagens. Estava tudo explicado.

Eu poderia jurar que o Chico votava no Democratas desde bebê. Talvez vote mesmo mas, no fundo, queria votar na Dilma. Aqueles terninhos de gola chinesa que ela usou nos debates o seduziram. Socialismo de mercado. Crescimento asiático. Jamais teria saído com ele se soubesse desse lance esquerdista.

Todas aquelas discussões, ele tão enfático sobre a natureza criminosa do MST, a corrupção endêmica no governo federal, a falta de um verdadeiro capitão Nascimento para limpar as favelas, o voto de cabresto que é o Bolsa-família.

Minha família é de esquerda. Meu pai é metalúrgico. Votamos tantas vezes no Lula, que acabamos colocando ele lá. Dormi no ponto. No ponto, no ônibus, na cama. Durmo praticamente em qualquer lugar. Nada me faz perder o sono, na verdade. Eu sou de direita?

Geralmente, digo social-democrata. E não me venha com esse sorrisinho na cara. O que está em jogo aqui é que sou uma mulher que precisa e acredita na alternância de poder. Mas com os de direita, sonhando com a esquerda, não sei. Perco a fé no meu próprio governo.

Para quem quiser conferir a insônia da esquerda, clique aqui.

domingo, 24 de outubro de 2010

Aposta

Depois daquele pé na bunda, só lhe restava ir à lotérica. A vendedora sugeriu um dos bolões da mega-sena. Cotas a R$ 10 e R$ 30. Comprou uma de cada. Olhou na bancada e resolver tentar tudo: lotomania, timemania, dupla sena, federal, loteca... Não tinha cabeça para pensar em tantos números e combinações, deixou que a máquina fizesse a sua sorte.

Ela apenas achava justo que algo desse certo. E, certamente, preferia sua parte em dinheiro. Não precisava ser muito. Qualquer R$ 5 mil já resolvia. Mas Deus poderia ser justo e lhe pagar os juros. Assim, por baixo, devia a soma devia girar entre uns R$ 7 ou R$ 8. Milhões.

O problema é que Deus era um caloteiro. Ele permitia que as pessoas colocassem as dívidas na conta dele, as menores, as maiores e nada de comparecer. Todo poderoso, o SPC e a polícia não o alcançam. Ou não se dão ao trabalho. Talvez Deus seja apenas um viciado na bajulação e quer só curtir.

Não sabia de ninguém a quem Ele tivesse pago o que fosse. Ele devia ser mais como uma máquina caça-níquel, umas luzes coloridas, muita gente tentando a sorte, perdendo seus tostões, e um desavisado ou um viciado que leva uma porcentagem da bolada.

Passou dias sem dar pelo frasco verde de xampu na prateleira do box. De manhã, colocava o primeiro sapato que via, o mesmo que tinha tirado antes de deitar. Nem queria saber o que podia ter naquela sola. Comeu miojo com ovo no jantar por uma semana. Não acreditaria que tinha feito nada daquilo se lhe contassem anos depois.

Nice foi fazer a faxina do apartamento. O acordo é que viesse uma vez ao mês, limpasse os vidros, os azulejos e passasse as camisas do André. Encontrou na mesa, sob pilhas de envelopes, folhetos de comida e revistas, os recibos dos jogos. Prendeu-os com um imã na geladeira para que a patroa os visse assim que entrasse.

À noite, quando chegou, se surpreendeu mais com a honestidade da Nice do que com seu próprio esquecimento dos jogos. No computador, conferiu um por um. Nada. Três pontos em um. Um ponto onde não devia marcar nenhum, ou fazer vinte. É o que dizem: a casa sempre vence.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Noite do elefante


- Qual é, Marcelo, tem que ter despedida! O que tá pegando?
- Beto, o que tá pegando é que eu não vou estar pegando. Vou ter minha despedida na noite de núpcias! Não sei como, mas tenho que impressionar a Ângela, cara.
Durante os oito anos de namoro, Marcelo sempre serviu um arroz com feijão dos mais bem temperadinhos. Como sempre ouviu que as mulheres valorizavam a noite de núpcias, calculou que, no mínimo, deveria servir à francesa na lua de mel.
Beto sugeriu que fossem à banca de jornal. Voltaram com pilhas de revistas femininas. De onde concluíram que as mulheres eram loucas por artigos de sexshops. Vibradores. Gel do beijo, que esquenta, que retarda – esse podia dispensar de cara. Livros de massagem. E roupas sensuais. A vendedora ajudou. No final incluíram uma cueca de elefantinho no pedido.
Despedida garantida, Beto foi direto contar à galera, combinar logo o bar e quais meninas contratar. Marcelo foi pra casa, estudar os livros de massagem e experimentar de novo a tal cueca.
Não iria admitir pra turma, mas não sabia o que Ângela ainda estava fazendo com ele. A mulher era um clone da Penélope Cruz e ele do mais orelhudo dos cassetas.
O discurso do padre emocionou até o Beto, que ainda andava meio tonto da bebedeira da véspera. A festa avançou a madrugada, mas os noivos se recolheram por volta das 3h da manhã.
Ela decidiu se trocar no banheiro da suíte do hotel. Ele pegou seu kit sensual, reviu suas anotações da massagem e se vestiu. Sentou na cama e aguardou. Ângela abriu a porta. Tinha cheiro de pêssego e vestia uma curta camisola branca. Estancou na porta do toilete.
Marcelo ficou assombrado com a mulher. Uma assombração super positiva, que ela percebeu pelo movimento da tromba.  Movimento que também atingiu as orelhas do elefante, tão similares às de Mário. Ângela não conseguia disfarçar seu estranhamento. O olhar dela, de repente, captou os géis e os óleos de massagem no criado mudo. Nem assim se recuperou. Foi lentamente até a cama e beijou-lhe a testa:
- Nossa, estou cansada! Vamos deixar isso para amanhã. Boa noite, amor. 

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O caso da bola e do lustre




- Bola!
- É lustre.
- É bola.
- É lustre.
- Bola!
- Lustre.
- Bola!
A discussão entre a criança e a mulher já durava uns dez minutos nesse “é”, “não é”, quando eu, que tentava dormir no quarto ao lado, decidi intervir.  
- É bola, não vê que é bola, mãe?
Lucas sorriu quando me viu em sua defesa. Minha mãe alegou que só queria ver até onde ele iria com aquela discussão. Como onde? Até sempre. Em seus um ano e oito meses nunca o vi renegar uma ideia.
O lustre do quarto de dona Patrícia, minha mãe e avó do Lucas, é uma peça redonda de vidro trabalhado. Tem pequenos gomos, como uma bola de futebol estilizada. A luz é de um tom amarelo-avermelhado. Lucas, dono de bolas de tênis, de capotão, daquelas vendidas no posto de gasolina e sei lá mais quantas, sabia definitivamente o que era uma bola.
- É uma bola que brilha, Lucas, expliquei.
Ganhei o coração do garoto.
- Que brilha?
- Isso, uma bola que brilha.
Ele ainda ficou experimentando a palavra nova - “brilha” – por alguns minutos. Depois, satisfeito, foi brincar de olhar-se no espelho.
Desde que aprendeu a falar, Lucas tornou-se o meu guru. Cada descoberta sua me provoca. O lustre é uma bola que brilha. Como alguns sentimentos, de uma essência tão familiar, e revestidos de algo que seduz e cujo nome nos escapa. É uma bola, de fato, mas uma bola que brilha.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A visita do morto

Vindo, não sei de onde, pousou um pedaço de papel sobre o meu teclado. Nele o telefone de Rafaela, minha ex. Sogra. A letra era minha. Óbvio que era um sinal. Mas ninguém me contou.

Limpava a estante quando aconteceu. Desconfio que estivesse infiltrado entre os livros e cds velhos. Programado para dar seu rasante dois meses antes da aparição. 

Ele voltou. Solteiro. Disfarçava, puxando assunto. E eu que o dava por morto e que respeitava os espíritos, não os amolando por tão pouco. 

Não o matei. Foi ele que se matou sozinho. Senti raiva porque não tive culpa. E adoraria ter tido. 

Contei pra Carol, uma amiga, que me disse que o importante era saber o porquê de ele ter voltado. Não poderia me interessar menos. Mantenha uma distância cética, ela recomendou, mas descubra, senão ele encosta e não vai embora.  

Já vi muito filme de fantasma. É só ignorar ou virar amiga como no Harry Potter. E se não me disse quando estava vivo, depois de morto é que não me interessa. Se a notícia é fria, pode muito bem esperar eu chegar lá pra me dar a letra.  

Mas depois da conversa com a Carol, me senti na obrigação de lhe contar o tal porquê da visita. Perguntei. Ele disse estar perdido. Transitando entre um mundo e outro, um dia me viu na rua e me seguiu. Não queria incomodar, apenas saber como eu estava.  

Aposto que a Carol o classificaria como fantasminha camarada. Ainda não sei. Não sou muito dada ao perdão. Dizem que isso poderia libertar a alma dele, mas acho que isso ele deve desenrolar lá com Nosso Senhor. Senti um pouco de pena. Mas já faço muito de não chamar um exorcista. Que vá logo. O tempo urge e a fila do juízo final é grande.


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