segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Que se dane o que vão dizer

Essa crônica foi publicada originalmente no Vida a Sete Chaves, mas resolvi compartilhar com os leitores do Crônicas também. Espero que se gostem!




Hospital público. Sabe como é, né doutor? Demora pra ter vaga. Cheguei todo arrebentado e fiquei mais de dia na fila. Depois mais um dia – ou foram dois? – na recepção aguardando minha vez. Estava tão grogue de dor que agora num sei se foram um ou dois dias. E tinha um bagulho de senha, tá ligado? Parecendo banco, moderno! Só que modernidade pra hospital pro povo é só pra dar enrolar, cara. O número não muda. E quando muda, não muda pro seu. Fiquei lá tanto tempo que até consegui sentar!

O que eu tinha? Levei um tiro de raspão e caí da moto lá no Pelourinho. Tinha que entregar umas encomendas lá no Centro. Senti a bala, desviei, mas ralei os braços, saiu osso pra tudo quanto era lado. Mas lá no hospital, acharam que não era assim tão grave, não, e foram passando gente na minha frente. Passando gente, modo de dizer, porque nem foi tanto povo assim, senão a fila encurtava.

De preto, minha cor original, já tinha parte ficando roxa. Se não era gangrena, num sei o que foi. A enfermeira fez cara de espanto: Vixie, meu Senhor do Bonfim, que esse homem tá apodrecendo! Os médicos acorreram, me jogaram numa maca, levaram lá pra sala de cirurgia e quase que foi sem anestesia, de tanta pressa deles. Pressa ou doideira? Era madrugada, os negos vira as noites e embala os dias no plantão, num dá pra saber. Tem uns que até são meus clientes.

Daí que acordei, três dias depois. Num quarto com outro maluco. Tinha ainda duas camas vazias, depois dizem que num tem vaga quando a gente procura. O maluco passava os dias ouvindo Luan Santana. Tocava num celular de merda, que ele deixava já direto na tomada pra não descarregar. Olha o que fazem com o nosso dinheiro. “Amar não é pecaaaaaaaaado/ e seu estiver erraaaaaado”… Aquilo martelava na minha cabeça até dormindo.

Seis dias eu agüentei, doutor.

Nem pedi silêncio, seu delegado, só pra tocar outra coisa. Que aquilo tava doendo mais que os pontos, que os remédios, que o estouro da moto. Ele olhou nos meus olhos e cantou mais alto: “Eu tô apaixonaaaaaaaaaaado/ Eu tô contando tudo/ E não tô nem ligando pro que vão dizer… Que se dane o mundo”…

Nessa hora me ferveu o sangue. Parti pra cima dele com a faca de plástico mesmo. Pode acreditar, doutor. Com a raiva que eu tava, num precisava de outra coisa. Agora, quero vê quem vai ser o doido de tocar essas merdas pro meu lado.

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