quinta-feira, 10 de junho de 2010

Transformação


Aos 18 anos nem esperou a convocação do Tio Sam e se alistou no Exército. Cumpriu dois anos no Afeganistão. Não voltou para casa. Ainda não. Pegou um navio para correr o mundo, desembarcou por aqui. Numa sexta-feira de julho, ele estava no trem a caminho da Luz, em São Paulo.

Tinha os olhos muito verdes e o cabelo loiro ainda no estilo soldado, meio oculto sob uma touca, sua branquelice chamava a atenção. Tanto quanto o agasalho camuflado e a mochila de guerra, enorme até mesmo para os padrões daquela linha do fim do mundo ao Centro Antigo.  Ia em pé. Firme no chacoalha chacoalha da velha lataria.

Sentada em um dos bancos, viajava uma mulher morena de seus trinta anos. No frio paulistano, protegia-se com um casaco preto, blusa cinza e cachecol. Comum. Abriu a bolsa. Espelhinho em punho. Sacou a base. Líquida, rapidamente foi absorvida pela pele.

A atenção do soldado, então, desviou-se da paisagem (quilômetros de trilhos e prédios pichados à esquerda e à direita) para ela. O blush foi aplicado com leves toques do pincel. Um delicado tom róseo tornou-se perceptível nas maçãs do rosto. No soldado, a sobrancelha direita erguida sugeria alguma movimentação interior.

Em seguida um pequeno bastão, semelhante a um batom, foi aplicado nas pálpebras superiores. O lápis definiu um traço sutil junto aos cílios, para em seguida ser sublinhado por mais um pincel, desta vez com sombra discretamente colorida. Por fim o rímel, em várias passadas, ergueu os cílios.

Ele nem piscava. Não notou que assim destoava ainda mais dos outros passageiros, mas não teria se importado mesmo que percebesse. Ela renascia ali. Era uma mulher totalmente nova, insuspeita no ambiente semi-escuro. Bela. Estava fascinado, jamais havia assistido a alguém se produzindo.

O banco entre o soldado e a mulher vagou. Como ninguém se manifestasse, ele o ocupou. Ajeitou a touca. Abriu a mochila. Pegou um estojinho azul claro. Continha maquiagem. Tinha prestado atenção, com certeza agora conseguiria fazer sozinho.

2 comentários:

  1. Me diz se não é sensacional? Por que eu, certamente, é que não vou dizer.

    Parabéns! Um primor de narrativa!
    bjs

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  2. É mto gostoso ver qdo as pessoas gostam do texto da gente. Obrigada mesmo!

    Beijos

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