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terça-feira, 29 de setembro de 2015

A vaca do dia sou eu

Imagem: https://www.flickr.com/photos/petukhovanton/

Quinze minutos depois do tchau, percebi que fui absolutamente grossa com alguém. Alguém bacana, legal, que não tinha a menor ideia de porque eu estava sendo daquele jeito. Em minha defesa, se alguém interrompesse a cena naquele exato instante, eu também não saberia dizer. 
Quer dizer, o sujeito é um colega menos experiente e foi contratado, coisa que eu venho requerendo há um bom tempo naquela empresa. Sabe menos do que eu, em geral, e estava me explicando as mudanças mínimas que fariam diferença no meu expediente daquele dia.
Tá, tá, e a minha cabeça girando, por que ele e não eu que venho comendo grama amanhecida há tanto tempo. Porque, a minha mente responderia dez minutos depois, você estava em outra e não tem ideia de quando e porque isso foi definido. Não há culpados, só a vida que corre. 
Então, acontece que dessa vez eu fui a escrota com alguém. Tantas vezes alguém foi comigo e eu sempre avaliava que a pessoa devia estar com algum problema dela e eu virava saco de pancada apenas porque calhara de estar no lugar errado e na hora errada. Que a pessoa não era, necessariamente, uma escrota, poderia apenas estar sendo uma no momento.
Espero que, surja uma oportunidade de eu me desculpar com o sujeito. Mas perceber que eu fui uma escrota é melhor do que não ter percebido, do que passar a fazer as coisas no automático e adotar isso como modo de vida. Não significa que eu esteja me sentindo ótima e iluminada com esse insight, longe disso. Mas, pelo menos, resta a certeza de que não me perdi de todo.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Café dos encontros

Imagem: Michele Molinari (http://www.flickr.com/photos/globevisions/)
Ornella possuía um pequeno livro de capa vermelha sobre seu próprio futuro. A obra fora escrita pela avó Dormélia, que além de prever toda a própria vida, antevira a da filha e a da neta.

A moça não se interessava pelo que aconteceria à mãe e à avó, apenas lia e relia a passagem que revelava que seu prometido a encontraria numa tarde qualquer no Café da Vila. Prometido por quem? Pela avó? Fosse por quem fosse, ela contribuía para o milagre rezando a previsão.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

E é hora do Crônicas Retrô




Eu não me incomodaria de ter um ano novo meio parecido com esse que se vai. Sei que a maioria quer 2011 entre logo no bolso e que carregue tudo possível junto. Mas, apesar das turbulências econômicas, pessoais inclusive, eu aceitaria de boa uma outra rodada dos pontos fortes desse ano: os novos amigos (pessoal do B_arco, dos cursos da Terracota editora, etc.), as férias do meio de ano (dobradinha entre Paraty/RJ e o Ceará), eu ter tido coragem para voltar à facul, as aulas maravilhosas do querido Marcelino Freire e tanta coisa ... Fui meio ausente do “Crônicas das 12”, mas andei colaborando com o pessoal do “Vida daSete Chaves, e descobri, vejam só, que tenho fôlego para narrativas mais longas.

Em 2012 a ideia é dar uma repaginada no layout do blog – que sim, vai continuar muito azul, mas com mais destaque para as fotos – e criar um outro blog, este sobre livros, veremos. Bem, não prometo datas porque, e isso é outra descoberta de 2011, o importante é começar, mesmo que seja uma dieta uma semana antes do Natal, :P

 "Resoluções? Eu? O que você está sugerindo? Que eu preciso mudar?? Bem, amigo, no que me diz respeito, eu sou perfeito do jeito que eu estou!"

Assim, no apagar das luzes, pensei que seria bacana fazer uma retrospectiva dos meus melhores textos neste ano – pelo menos foram os que eu mais gostei de ter escrito. Quem não viu, veja agora no “Crônicas Retrô”. E claro, que seu ano seja abençoado e que você tenha força e saúde para conquistar o que 2012 tiver de melhor a oferecer.








sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O meu nome é próprio

Então, republico aqui crônica minha que saiu no Vida a Sete Chaves. Vamos iniciar uma fase "Vale a pena ver de novo" aqui no Crônicas das 12. Em breve textos novos por aqui também.

A minha sala de aula tinha pares de “Danielas”, “Julianas”, e “Priscilas”, uma “Aparecida” e outra “Daniela Aparecida”. Em todas as turmas do antigo quinto ano só tinha uma “Aline”. “Aline Viana”, então, era único na escola. Exclusivo. Só sentia falta de um apelido, coisa que as outras tinham. Anos depois, com a internet, meu nome tornou-se cobiçado no mercado.

Daí fiz colégio, faculdade, abri contas de e-mail. Alguma “Aline Viana” do mundo conseguiu o privilégio de registrar-se antes de mim no Hotmail e no Gmail. Bati pé e inscrevi-me sem adotar como codinome algum numeral ou apelido. Ficou algo simples e elegante o bastante para divulgar nos milhões de currículos que enviei ao longo da vida.

Mas agora as sombras têm reivindicado o que é meu. Nome, e-mail, memórias e sanidade mental. E é um nome perfeitamente quitado, segundo minha mãe.

Elas criam um e-mail bem parecido com o meu. Daí distribuem por aí para quem não interessa, talvez. Como quem troca um número na seqüência do telefone para despistar alguém. Ou tentam me ganhar pelo cansaço.

Nessas já tive família em Recife. Meu pai virtual me recomendava cursos de língua, meus tios enviavam piadas. Apagava tudo sem ler. Imaginei que fossem notar que a outra nunca respondia e checassem. Até que minha mãe de Pernambuco me cobrou nos termos mais enfáticos por não visitar o tio Alfredo no hospital. Com foto do paciente e tudo. Mamãe, preciso fazer uma revelação: a cegonha trocou os e-mails.

Outro dia, foi um suposto irmão, com nome de desembargador, que me procurou, querendo saber da recuperação do braço quebrado. Respondi à genntileza: “irmãozinho querido, somos parentes não. Procure aí o e-mail da maninha e sucesso”. O brother, em sublime juridiquês, me chamou de ursupadora, queria saber quando abri minha conta. Ora, faça-me o favor, além de desinformado ainda vem me perguntar a minha idade! Eu vi primeiro e não tenho que contar nada. Abri, é minha e não dou, não empresto e nem vendo, tá me entendendo?

O último foi um hermano que diz ter me conhecido por essas veias abertas do continente. Pedia o contato de um professor uruguaio porque queria precisava encontrar algumas maria-joanas e contava que tinha me trazido alguns alfajors lá da capital. Apesar da dor no coração, pelos doces que amo, fui honesta. Não te conheço, amigo. Não tive professor uruguaio. Podia ao menos mandar o alfajor, o ingrato.

Pra não dizer dos vírus. Que enviados em meu nome, por alguma retardatária com menos espírito esportivo, o sujou em algumas praças. Pois é, em algum lugar, tem uma Aline Viana terrorista. Que queima o próprio nome. Essa deveria arder no mármore do inferno.

Nem assim coloco o nome à disposição. Não que ache que irá se valorizar mais, mas é que tem um valor afetivo, sabe? Ganhei de mamãe.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

End's tonight

O ano passado bateu todos os recordes de casamento. Pelo menos na minha tabela: seis casais de amigos resolveram dizer o “sim”. Desconfiei, devia ser um sinal do fim dos tempos. A moça chamava o rapaz e disparava: “não vou pro juízo final solteira, meu amor!”. Fiquei sem entender, afinal os maias marcaram o evento, com bastante antecedência, para 21 de dezembro de 2012.  Deu vontade de alertar os noivos e noivas vítimas de possível chantagem emocional: ainda restava uma janela de quase um ano a se aproveitar. Mas aí descobri que o fechamento do planeta foi antecipado pra amanhã. Isso mesmo, sábado, 21 de maio.

O anúncio foi feito por um movimento cristão norte-americano. Concordo com o leitor que lembrar que eles fazem esse anúncio quase todo o ano, mas, convenhamos, uma hora eles podem acertar e vai que é amanhã? A tal “Family Radio Worldwide” está empenhada em espalhar a notícia por todo mundo.

A expectativa da associação é que, neste sábado, os escolhidos ascendam aos céus e os renegados pela benção divina fiquem por aqui curtindo um período de tormento, até o fim dos tempos. O fim do mundo ter sido antecipado é bem típico de Deus, querendo prender todos os jornalistas na redação.

O mundo acaba, mas a imprensa segue: não vai ter jornal encalhado nas bancas. Todos, com depoimentos de mil especialistas, dirão como nos preparar para esse momento único da humanidade. Os portais de internet estarão à toda com a cobertura em tempo real, enquanto as rádios dirão as rotas menos congestionadas para tocar a mão direita de Deus.

Pena que eu só soube hoje do fim do mundo. À noite já tenho compromisso: bar com os amigos. Gastarei, então, minha última noite na balada. Mas se tempo eu ainda tivesse, iria apelar à pessoa amada: “Vamos ficar só essa noite e depois vemos no que vai dar”.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Uma noiva para Gamal



A solteirice incomoda muito. Aos outros, principalmente. E estes, por sua vez, nos cutucam até tomarmos alguma atitude. Jamais aceitarão que a pessoa se acostume com este singular estado civil. Gamal foi vítima dessas boas intenções.
 – Não, não pode! Onde já se viu homem bonito, trabalhador e de boa família sem mulher? – Quem dava voz ao consciente coletivo era o cunhado de Gamal, que alimentava uma barriga de homem bem-casado.
Com isso, mãe e irmãs se sentiam no direito de cobrar também. Não queriam um homem encalhado em casa. Nenhuma boa família da Índia permitiria isso. Se ficava sozinho, era porque tinha voltado ocidentalizado. Em língua corrente: viado. 
– Já que você fica tanto tempo na internet, por que não procura lá uma mulher? Em um site de relacionamento? No Facebook? Vi uma pesquisa na tv que dizia que são 48% maiores as chances de se encontrar alguém assim do que pessoalmente.
 Mal não podia haver. E era melhor do que deixar o pai, até ali de fora da polêmica, procurar entre as boas famílias da Índia uma mulher para ele. 
 Boas mulheres sim, mas não pra ele Gamal, que veio sim um pouco ocidentalizado da América, onde fez faculdade. Mas não como temiam. Voltou querendo mulher loira, de peitão, original ou de silicone, não fazia preconceito.
 Almoçava no escritório para poder ficar nas salas de bate-papo e nas redes sociais. Chegou até bloquear algumas candidatas mais afoitas. Sexo nos primeiros toques? Americanizada sim, mas sem perder a pureza. E não só de coração. 
 Demorou, mas encontrou. O Facebook tinha sido uma ótima ideia, iria agradecer ao cunhado. Temente à Shiva, loira e com peitão. A família estranhou um pouco os cabelos tingidos. A moça era de poucas palavras e nenhuma família, todos mortos em um acidente no Ganges. Anusha pagou o próprio dote. E a sogra achou um lucro ela saber fazer o tchai.  
 Na primeira noite de casados, não consumaram a união devido ao cansaço após tanta celebração. Depois ela disse estar menstruada, depois foi enxaqueca, depois passou a seduzi-lo com jantares sempre regados à bebida farta. Gamal logo cochilava e só iria fazer nova tentativa na noite seguinte, quando era novamente traído pelo desejo de comer.
Quando a barriga de homem bem-casado apareceu, tornou-se o orgulho da família. Ninguém iria imaginar que passava fome de mulher. 
– Exija seus direitos de marido, Gamal! – Ouviu de um amigo quando um dia desabafou. 
Tentou, insistiu, mas Anusha escorregava sempre. Ou ele adormecia, ou vinha visita, ou ela estava naqueles dias, ou qualquer outra coisa. Ao cabo do terceiro mês, não a tinha visto toda nua. Só umas partes: o pé na sandália de tiras, o tornozelo quando a barra da saia levantava centímetro e meio ao subir a escada, os braços e o colo no decote. Era uma loucura para Gamal, que viveu tanto tempo sem dar por falta de mulher.
O amigo confidente contou para o cunhado de Gamal, que consultou o sacerdote e este fez saber a outros homens e todos concordaram que aquilo não estava direito.
Eles exigiram de Anusha uma explicação. Ela se fez de ofendida, não quis falar com ninguém e se trancou no quarto. Pressionaram. Gritavam que iriam arrancá-la de lá e obrigá-la a servir o marido de qualquer jeito. 
Arrombaram a porta, mas Anusha conseguiu sair pela janela. Deitou a correr pelo bairro e toda gente atrás. Gamal, perdido no meio do povo, ia junto. Perdida ela também, acabou por encurralar a si própria em um beco. Até mulheres já faziam parte da turba agora. Uns batiam, outros tentavam arrancar-lhe as roupas. Mal se ouvia seus gritos sufocados de protesto. O marido temia pela esposa e já se acusava e se arrependia por aquilo tudo. 
 Quase nua, estava visível qual era o problema da mulher: o volume na calcinha, o gogó se destacando, uns pelos muito grossos por todo o corpo. Era homem a Anusha. Não fosse a polícia chegar, ele viraria mulher na marra, de tanta pancada. Gamal é que não sabia mais o que era, onde estava. Fechou no mesmo dia o perfil do Facebook e fez as malas. Iria se jogar na América, garantiu. Queria agora de todo jeito a sua loira com peitão, dela ou de silicone, não fazia preconceito desde que fosse mulher, isso sim, original de fábrica.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Três é demais


Dois filhos eles queriam. Menino e menina ou dois de cada. Mas apenas dois. Foi o que disseram ao médico. Choro após choro soou na sala de cirurgia. Vozes distintas. Três. Eram os analgésicos, só podia ser, ela pensou.

Eram três bebês. Deus, eles só tinham dois nomes: Marcela e Isabella. Na verdade, quatro. Também pensaram em Marcus e Gabriel. Se viesse um de cada, olhariam bem para eles e tirariam a sorte no cara ou coroa.

Três meninas. Só podiam ficar com duas, Nina repetia para si mesma no quarto. 

Pedro soube pelo médico, logo após o parto. Só conseguiu dizer:

- Nós só queríamos, queremos, dois filhos. Qual parte você não entendeu?

O marido foi pensar no carro em como dizer à Nina que não tinha mudado de ideia, ainda queria só dois filhos. Era o que cabia no apartamento, no orçamento, na vida deles. Planejamento familiar, ele acreditava nisso.

No princípio poderiam ter sido os analgésicos, mas agora ela estava desperta. Três não eram duas. Ela pediu dois bebês ao médico que fez a inseminação. O marido poderia confirmar. A cigana havia previsto que iria encontrar um homem que gostasse de viajar, um homem confiável e fiel que seria sua rocha, com quem teria dois filhos. 

Conheceram-se na festa de ex-colegas da faculdade. A festa foi acabando, a carona dela embriagou-se tanto que só restava passar a noite ali, no frio do salão. Ela desabou no sofá exausta e pegou um café para não apagar, ele puxou conversa. Estava com um amigo na mesma situação. 

Descobriram que tinham ido aos mesmos shows, visto os mesmos filmes, adoravam suco de melancia, freqüentavam a mesma igreja, tinham vários amigos em comum. Eram quase a mesma pessoa.

Assim que recebeu autorização, Pedro subiu ao quarto para visitar Nina. Foi verem-se para saber que tomaram a mesma decisão: continuavam querendo duas crianças. A vida não é promoção, onde pelo preço de duas se leva três. Avisaram ao doutor Felipe para preparar apenas duas delas para levarem.

O médico também não quis saber de promoção. Encaminhou as três meninas ao conselho tutelar. Aos pais, disse para procurar o Procon. 

O texto foi baseado em uma notícia veiculada pelo portal iG sobre um casal que resolve colocar para adoção um de seus três bebês. Confira aqui

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Cuidado com as coisas fúteis


Inferno astral não são os outros, meu bem. É o seu céu mesmo que pode andar meio virado, e isso bem antes do mês do aniversário e, pior, várias vezes ao ano. A fase dura entre três a dez dias e é mais ou menos como uma tpm fora de época. Eu não percebi na hora, mas o primeiro sinal dos maus dias foi esquecer meu chocolatinho da calma porque não ouvi o despertador tocar e precisei sair correndo para não perder o trem das 7h, isso numa véspera do feriado. 



No site que dá as previsões – que não sei porque ainda leio, já que é sempre um tal de “não faça isso”, “não faça aquilo”, que mais parece a minha mãe do que astrologia – a orientação para o final de semana era para tomar “Cuidado com problemas de ordem fútil”. Nessa fase a pessoa meio que vira uma casquinha de ferida, implica com qualquer um por qualquer coisa.

Só que não é verdade, eu implico com o quê já implicava antes. A diferença é que tenho a impressão de que as pessoas fazem tudo de propósito para acabar com o meu humor. Se não lhe parece muito equilibrado da minha parte, tudo bem: sua opinião não é muito importante para mim neste momento.

Sábado foi o início do ciclo. Era minha primeira folga no hospital em dois meses. Sou enfermeira e posso garantir que não tem nenhum sex appeal nisso. Quem quer isso da vida, dê um F5 e vá ser bbb. Mulher fruta. Paniquete, sei lá. Sexo em hospital só rola na cabeça de adolescentes e de velhinhos já chegando no Alzheimer.

Não vou me alongar em divagações. Sábado, a faxineira faltou. Motivo: precisava ensaiar para um concurso de forró. Iria representar o pessoal do bairro, da igreja, sei lá. Não, não podia indicar ninguém, mas viria normalmente na semana que vem. A casa de pernas pro ar. O telefone toca, ainda são 8h30 da manhã. É a minha sogra avisando que vem pra cá. Seu Denis, de cama há meses, está de caso com a enfermeira da noite. Ela vai trazer as malas.

O filho dela não sabe o quê fazer, mas se arruma rapidinho para não perder o futebol com a turma da firma. Não tem cama para ela dormir aqui. As pessoas deveriam encarar isso como um sinal, mas não. E lá vou eu comprar uma cama que não poderei enfiar em lugar nenhum.

Domingo. Ela já está aqui há 16h. Reclamou que o táxi do aeroporto não tinha ar condicionado. Que a vizinhança era feia. E que as bebidas alcoólicas da geladeira pareciam chá. Deveria ter explicado que era para, quando bêbada, não correr o risco de atirar alguma visita simpática pela janela.

A cama nova só será entregue amanhã. O filhinho lhe ofereceu a nossa cama. Eu fiquei com o sofá. Ele tentou se ajeitar com umas cadeiras, ainda pôs umas almofadas. Não deu certo e acabou indo dormir no carro.  Achei foi pouco.

Choveu o dia todo. Poderia esquecer do delivery porque motoboy não é anfíbio. A tv a cabo ficou fora do ar. Fomos ao cinema porque a janela começou a ficar convidativa demais. Mais de meia hora pra achar vaga no estacionamento. Os filmes todos já tinham começado. O jeito foi assistir à transmissão de uma ópera. A sogra aprovou. Eu e o Ricardinho ansiando por uma janela.

Mamãe liga à noite. Meu primo Maurício quer largar a mulher e voltar pra casa da vovó. Por isso havia tantas ligações perdidas da Sandrinha no meu celular. Tive que concordar com o padre da televisão: “as novelas estão acabando com a família”. Não vou retornar as ligações: seria muito chato eu dizer que o primo está coberto de razão. A Sandrinha é um encosto, todo mundo sabe. Ainda correria o risco de ele vir chorar no meu ombro. Soltei a tomada do telefone fixo. Eles que se explodam pra lá, na minha folga.

Segunda-feira, último dia de feriadão. O gerente da loja da cama liga e diz que não faz entrega aos feriados. Mas vender ele pode, o danadinho. Mandei a sogra ir lá comprar um guarda-roupa. Agora ele vai ver o que é promoção.

O Ricardinho escorregou no futebol e torceu o pé. Mandou o Beto vir do campinho me chamar. Ele entrou todo cheio de lama apartamento adentro. O cara arfava como se correr 200m fosse alguma São Silvestre. Não consegui entender nada. Apenas chorar. Aquelas pegadas enormes, meu tapete branco, a sogra, a cama, o guarda-roupa, a chuva que continuava, minha folga.

Entreguei um gelol pro Beto. E dinheiro pro táxi. Que fosse para o hospital ou para qualquer outro lugar, tanto fazia. Coisas fúteis? Não, pessoas fúteis, por todo lado. Vontade de ir buscar lá no Jardim Ângela aquela faxineira biscate pra dar um jeito nisso aqui, mandar a sogra para um albergue pra ela reclamar, agora com razão, que sentiu até os paus da cama sob o colchão, vontade de ir para o hospital.

Neste final de semana o plantão é do doutor Marcos. Podia usar aquela lingerie branca nova. A vendedora fez questão de dizer que era importada. Liguei pra Marcinha que topou trocar a folga, agora quem vai ser fútil sou eu.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pensa, que pensa


Era de tanto pensar que Maria perdia o amor. Pensou primeiro que não queria amar ninguém. Pensou depois que ele era velho demais. Só que um beijo, tudo bem. O beijo poderia ser melhor, não pode deixar de observar. Depois percebeu que ele guardou a carícia melhor mais pro final. Na noite seguinte pensou que vê-lo de novo seria o máximo.

Mas pensou de novo que ele era muito velho. E que vestia umas calças jeans de vaqueiro que só por Deus. E que ele era diplomata. Antes achava que diplomata era um carro, seu pai tinha tido um. Não sabia que tinha gente diplomata. Explicava o terno bege, como o carro. Quem usa terno bege? Diplomatas.

Isso foi na semana passada, já devia estar pensando em outra coisa. Vai ver era uma louca obcecada. Ela mesma reconhecia que sempre demorava pra esquecer. Primeiro foi André: quatro meses e dez dias juntos, para 18 meses de reflexões antes da próxima rodada, com 311 turnos. Parou de pensar porque cansou.

No Mauro não pensou muito. Mas no Rogério pensou bastante. Em se livrar, depois em deixar rolar, namorar. Muito, muito mesmo, pensou quando romperam. Até gritar. Ou melhor, ele gritar. Pensamentos são energia, energia emite raios, raios queimam a gente. Queimadura dói e a gente grita. Pensaram mais devagar, por precaução. Voltaram. Até que pensou muito, em casar. Quis parar de pensar na mesma hora. Mas não parou. Só não pensava junto.

Pensou em uma ou outra pessoa naquele tempo. Mente vazia é o laboratório do diabo, haviam lhe dito. Era o contrário. Pensar demais.

Na cabeça de Maria não fazia silêncio. E não tinha pai, mãe, nem ninguém da polícia ou da prefeitura pra apelar. Pensava que não sabia inglês e que ele sabia também espanhol, alemão e chinês. Não tinha carro, também nem ele que vivia com chofer. Ele, estrangeiro, ela, sem passaporte. Seria madrasta de dois meninos dez e doze anos mais velhos que ela, com sotaque e malcriados.

Só daria certo se ela não pensasse tanto. Se a boca dele fizesse nela um imenso clarão. Desses que emudecem tudo ao redor. Em português, ela explicou à Bia: “Sabe, eles podiam chegar, me dar aquele arrocha e dizer ‘Cala a boca e me beija’. Não pode ser tão difícil”.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Aos 50


Toda mulher tem uma fase de diva. Só que diva brasileira é diferente: tem todo um glamour, mas ela se destaca mesmo é pela sinceridade. Luísa Brunet, Vera Fisher e até a caidinha Miriam Rios confessaram recentemente que estavam sem sexo há, no mínimo, dois anos e contando. Carmem só então se deu conta de quantas folhas do calendário haviam se passado desde aquela noite com André, ao mesmo tempo em que se viu parte de uma comunidade seletíssima: a das novas virgens.

Aquelas mulheres estiveram ali a sua vida toda, ou pelo menos, por toda sua vida adulta, sem nunca terem compartilhado com ela o que fosse.  Nem ideias ou cor de cabelo. E eram da mesma geração, como Shakespeare e Gil Vicente. E acabava que ali, trinta anos passados, estivessem todas com a cama vazia.

Vazia como o mercado de homens. Guris de um lado, gays de outro. Vibradores ao lado do caixa.

Da última vez com André, mal se lembrava. Recolheu suas coisas pela casa, passou o café e deixou uma nota breve – “chega”. Era um feriado prolongado qualquer. Lá fora, céu azulzinho, com sol fraco. Caminhou na praia, tomou sorvete, redecorou o apartamento.

Mudou de emprego, de corte de cabelo várias vezes, aprendeu alemão, conheceu Buenos Aires, fez drenagem linfática, passou a ir à academia. Acordava cedo, trabalhava até tarde, ia a festas de gente que não conhecia. Dormia sozinha. Nem se deu conta.

Era uma mulher santa, quase uma monja, pensou consigo mesma. Não fazia sexo, não lembrava que tinha.  Era diferente de todas as mulheres com quem convivia. Semelhante só às divas. Foi de espelhinho em punho e pose de contorcionista verificar: estava lá, do jeito que mamãe e papai haviam feito.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

E é finito


Fazer aniversário em dezembro não é para qualquer um. Andei dizendo muito isso e as pessoas não acreditam, mas é verdade. Balanço de final de ano somado à análise inevitável de que se está ficando mais velho e ainda não se está lá, aos quase trinta, requer estrutura reforçada, muito chocolate, sorvete e filme da Reese Whiterspoon. E ainda bate aquela sensação de que vamos renovar promessas automaticamente, como se fôssemos o Paulo Maluf de nós mesmos.

Mas avaliando com calma, revendo as tabelas e batendo os diferentes índices é possível um entusiasmo quase lulista. Por isso, em edição inédita do “Crônica das 12”, vamos dar nomes aos bois, os melhores de 2010:

Dio, Evelyn, Denis, Grazi, Coru, Karina, e Fê – foi um ano de almocinhos das mais variadas cozinhas e dos melhores bate-papos de computação à dinâmica familiar, de RPG ao mais novo filme em cartaz.  Precisamos manter a ideia na pauta de 2011. Nesse ano a turma cresceu com a chegada da Grazi, o melhor reforço ao grupo em anos. E que o deus que combina as agendas nos abençoe.

Aline Macário e Macarrão – ela é meu avatar em Americana (SP)! Vale qualquer viagem para revê-los.

Reinaldo – obrigada por esse blog – afinal o dele (confiram a Claquete encabeçando a lista ao lado) me inspirou a começar esse projeto -, por alimentar o meu gosto pela sétima arte e pelos pitacos sempre precisos aos meus textos, dos quais serei eternamente dependente.

Maysinha – a melhor editora do mundo, muito obrigada pelas dicas, pelo carinho e amizade.

Carpinejar e Marcelino Freyre – escrever é preciso e é muito mais gostoso com as dicas de vocês. São dois escritores fodásticos, que quem não conhece precisa parar tudo e ler. Bem-humorados, generosos e, por vezes, ferinos na medida, enfim, o melhor da literatura brasileira now.

Flavinho, Ju Dondo, Leo, Talitinha, Carols, Lia... – trabalhar com vocês faz o meu dia mais feliz, parece clichê, mas é verdade. E me justifico lembrando que o clichê já foi uma ótima ideia, tão boa que passou a ser reproduzida em massa.

Paola – amiga que sempre me oferece um ano de pleno de aventuras jornalísticas e que está sempre presente, por telefone, e-mail e até pessoalmente.

Dri Yazbek, Emerson, Antonietta, João, Mário... – turma que provou que é possível fazer um ano diferente sim, a despeito da repetição do slogan por uma emissora de tv, apenas se deixando levar pela vontade de se contar uma boa história.

Queridos leitores Gente que eu fui conhecendo e me conhecendo aos poucos nesses meses, obrigada mesmo. Vocês humanizam essa blogosfera e me dão gás para continuar.       
  
Se alguém não entrou nominalmente na premiação, vai ver está camuflado em algum dos textos, confira e depois me diga.

E cuidado com o que desejam porque espero que todos os seus pedidos se tornem realidade em 2011.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A gaveta cheia


Tem coisas que a gente tenta evitar a vida inteira e encontra soluções temporárias, mas chega um momento em que a decisão se impõe. Era hora de Alberto morrer, Cristiane percebeu.

Porque ele era homem. Muito homem. Daqueles que mulher não resiste. E não só ela, esposa: todas. Começava com um sorrisinho, uns tapinhas nos ombros, um convite para uma cervejinha e lá estavam elas abrindo os dentes e as pernas. 

Sua política era, primeiro, avisar. Claro, uma ou outra temia a Deus e tomava de novo o rumo do culto de fundo de quintal quando o nome do santo pastor era invocado, mas a maioria não. A maioria delas não estava nem aí pra nada que não fosse o Alberto. 

A mais antiga na lembrança era uma prima, Fabíola, que se ofereceu para cuidar do bebê enquanto Cristiane ia pro supletivo à noite. Num dia de aula vaga, ou prova – não se lembra bem – saiu mais cedo e acabou notando os dois de risadas e bitoquinhas no sofá. Comentou com ela, como quem fala do tempo, sobre o caso da finada Patrícia, que havia sido cortada com cacos de vidro pelo marido até a morte porque andava de fricote com o Feliciano da feira.

Sutileza não é o forte de biscate. Mas isso, Cristiane percebeu à noite quando viu que os dois tinham se permitido logo explorar cômodos mais íntimos, confiantes de que aula vaga  todo dia não acontecia em supletivo.

Entrou pelos fundos na casa do pai e foi ao quarto de ferramentas, pegou uma foice de cortar cana e escondeu numa rua escura, por onde Fabíola teria que passar. Chegou em casa e tocou a campainha, disse que tinha perdido a chave. O marido apareceu, meio afobado, justificou a demora em abrir o portão por estar no banheiro enquanto a outra trocava as fraldas do bebê.

O corpo foi encontrado semanais depois, por abutres e cachorros, no meio de uma horta abandonada.

Já tinham sido tantas que quase perdia as contas. De cada desaforada guardava uma lembrancinha: um brinco, um colar...  Até usava alguns, mas Alberto não notava. A gaveta da cômoda, que tinha lascas soltas por todo lado, já estava cheia, logo não caberia nem mais um pingente.  É, ele tinha que morrer, não tinha outro jeito – Cristiane sabia.

A dúvida era como: veneno, facão, encomenda... Tinha experiência em tudo quanto era jeito. Certeza apenas é de que iria transmitir tudo ao vivo, pela internet.

Cansou de sutileza.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Conselho de amigo


Apenas para o meu bem fui proibida de ouvir minha canção preferida. A recomendação do amigo, cheio de boas intenções, era que assim deixaria de me lembrar do meu ex amor. Contrariada, obedeci – já havia passado do ponto de recusar ajuda. Imediatamente, a voz sabotadora de Luíza Possi começou a tocar em minha cabeça em um "repeat" infinito.

Se entendesse de medicina poderia cogitar que fosse meu organismo rejeitando aquela ideia estranha. Lembrei-me de uma tia que no período adolescência acreditava que todas as músicas de Roberto Carlos haviam sido compostas para ela.

Minha mente travou naquela música. Não que eu tenha algo contra. O meu humor reage imediatamente bem aqueles versos (“Você me faz bem/ quando chega perto/ com esse seu sorriso aberto...) . 

Mas ele tinha razão. Há músicas que nos prendem. Ou que deixam um gosto na boca. De vodca, de beijo na testa, de sal de lágrima. 

Foi numa dessas que enterrei minha melhor dose de Joss Stone. 

Antes que eu tivesse uma recaída, tratei de instalar um antivírus. Toquinho. Sheryl Crow. Daniela Mercury. Green Day. Mombojó. Apocalyptica... E Diana Krall.

Loira, canadense, quarentona, cantora de jazz. Poderosa. Veio ao Brasil há pouco tempo... Guardem esse conselho pra vender depois: Diana Krall.

Os acordes de piano de “Just the way you are” são apenas meus. Sensuais, desconfio que já procuram alguém para que eu compartilhe a posse.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Insônia da esquerda


Estou cansada demais para que meu cérebro articule tanta informação ou cogite abrir meu outro olho. É noite. Ouço vozes, tem um pouco de luz no quarto. A cama vazia ao meu lado. Desisto e durmo. Chico passou horas em claro de novo, sentado na beira da cama, vendo alguma reprise na tv. Irritado, mas sem querer me acordar.  

Pedi que fizesse acupuntura, mas ele tem medo de agulha. De acupuntura. Não quer tentar nem as sementes. Ofereci remédios, mas ele acha que nada que não tenha tarja preta funcione. Pensei que poderia ser a academia que ele faz à noite. Mas era culpa burguesa.

Tem uns pesquisadores da Universidade John F. Kennedy (EUA) que aferiram que pessoas da esquerda dormem menos, de forma pior e com sonhos bizarros de bônus, coisas como mortos-vivos e transas selvagens. Estava tudo explicado.

Eu poderia jurar que o Chico votava no Democratas desde bebê. Talvez vote mesmo mas, no fundo, queria votar na Dilma. Aqueles terninhos de gola chinesa que ela usou nos debates o seduziram. Socialismo de mercado. Crescimento asiático. Jamais teria saído com ele se soubesse desse lance esquerdista.

Todas aquelas discussões, ele tão enfático sobre a natureza criminosa do MST, a corrupção endêmica no governo federal, a falta de um verdadeiro capitão Nascimento para limpar as favelas, o voto de cabresto que é o Bolsa-família.

Minha família é de esquerda. Meu pai é metalúrgico. Votamos tantas vezes no Lula, que acabamos colocando ele lá. Dormi no ponto. No ponto, no ônibus, na cama. Durmo praticamente em qualquer lugar. Nada me faz perder o sono, na verdade. Eu sou de direita?

Geralmente, digo social-democrata. E não me venha com esse sorrisinho na cara. O que está em jogo aqui é que sou uma mulher que precisa e acredita na alternância de poder. Mas com os de direita, sonhando com a esquerda, não sei. Perco a fé no meu próprio governo.

Para quem quiser conferir a insônia da esquerda, clique aqui.

domingo, 24 de outubro de 2010

Aposta

Depois daquele pé na bunda, só lhe restava ir à lotérica. A vendedora sugeriu um dos bolões da mega-sena. Cotas a R$ 10 e R$ 30. Comprou uma de cada. Olhou na bancada e resolver tentar tudo: lotomania, timemania, dupla sena, federal, loteca... Não tinha cabeça para pensar em tantos números e combinações, deixou que a máquina fizesse a sua sorte.

Ela apenas achava justo que algo desse certo. E, certamente, preferia sua parte em dinheiro. Não precisava ser muito. Qualquer R$ 5 mil já resolvia. Mas Deus poderia ser justo e lhe pagar os juros. Assim, por baixo, devia a soma devia girar entre uns R$ 7 ou R$ 8. Milhões.

O problema é que Deus era um caloteiro. Ele permitia que as pessoas colocassem as dívidas na conta dele, as menores, as maiores e nada de comparecer. Todo poderoso, o SPC e a polícia não o alcançam. Ou não se dão ao trabalho. Talvez Deus seja apenas um viciado na bajulação e quer só curtir.

Não sabia de ninguém a quem Ele tivesse pago o que fosse. Ele devia ser mais como uma máquina caça-níquel, umas luzes coloridas, muita gente tentando a sorte, perdendo seus tostões, e um desavisado ou um viciado que leva uma porcentagem da bolada.

Passou dias sem dar pelo frasco verde de xampu na prateleira do box. De manhã, colocava o primeiro sapato que via, o mesmo que tinha tirado antes de deitar. Nem queria saber o que podia ter naquela sola. Comeu miojo com ovo no jantar por uma semana. Não acreditaria que tinha feito nada daquilo se lhe contassem anos depois.

Nice foi fazer a faxina do apartamento. O acordo é que viesse uma vez ao mês, limpasse os vidros, os azulejos e passasse as camisas do André. Encontrou na mesa, sob pilhas de envelopes, folhetos de comida e revistas, os recibos dos jogos. Prendeu-os com um imã na geladeira para que a patroa os visse assim que entrasse.

À noite, quando chegou, se surpreendeu mais com a honestidade da Nice do que com seu próprio esquecimento dos jogos. No computador, conferiu um por um. Nada. Três pontos em um. Um ponto onde não devia marcar nenhum, ou fazer vinte. É o que dizem: a casa sempre vence.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O caso da bola e do lustre




- Bola!
- É lustre.
- É bola.
- É lustre.
- Bola!
- Lustre.
- Bola!
A discussão entre a criança e a mulher já durava uns dez minutos nesse “é”, “não é”, quando eu, que tentava dormir no quarto ao lado, decidi intervir.  
- É bola, não vê que é bola, mãe?
Lucas sorriu quando me viu em sua defesa. Minha mãe alegou que só queria ver até onde ele iria com aquela discussão. Como onde? Até sempre. Em seus um ano e oito meses nunca o vi renegar uma ideia.
O lustre do quarto de dona Patrícia, minha mãe e avó do Lucas, é uma peça redonda de vidro trabalhado. Tem pequenos gomos, como uma bola de futebol estilizada. A luz é de um tom amarelo-avermelhado. Lucas, dono de bolas de tênis, de capotão, daquelas vendidas no posto de gasolina e sei lá mais quantas, sabia definitivamente o que era uma bola.
- É uma bola que brilha, Lucas, expliquei.
Ganhei o coração do garoto.
- Que brilha?
- Isso, uma bola que brilha.
Ele ainda ficou experimentando a palavra nova - “brilha” – por alguns minutos. Depois, satisfeito, foi brincar de olhar-se no espelho.
Desde que aprendeu a falar, Lucas tornou-se o meu guru. Cada descoberta sua me provoca. O lustre é uma bola que brilha. Como alguns sentimentos, de uma essência tão familiar, e revestidos de algo que seduz e cujo nome nos escapa. É uma bola, de fato, mas uma bola que brilha.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A visita do morto

Vindo, não sei de onde, pousou um pedaço de papel sobre o meu teclado. Nele o telefone de Rafaela, minha ex. Sogra. A letra era minha. Óbvio que era um sinal. Mas ninguém me contou.

Limpava a estante quando aconteceu. Desconfio que estivesse infiltrado entre os livros e cds velhos. Programado para dar seu rasante dois meses antes da aparição. 

Ele voltou. Solteiro. Disfarçava, puxando assunto. E eu que o dava por morto e que respeitava os espíritos, não os amolando por tão pouco. 

Não o matei. Foi ele que se matou sozinho. Senti raiva porque não tive culpa. E adoraria ter tido. 

Contei pra Carol, uma amiga, que me disse que o importante era saber o porquê de ele ter voltado. Não poderia me interessar menos. Mantenha uma distância cética, ela recomendou, mas descubra, senão ele encosta e não vai embora.  

Já vi muito filme de fantasma. É só ignorar ou virar amiga como no Harry Potter. E se não me disse quando estava vivo, depois de morto é que não me interessa. Se a notícia é fria, pode muito bem esperar eu chegar lá pra me dar a letra.  

Mas depois da conversa com a Carol, me senti na obrigação de lhe contar o tal porquê da visita. Perguntei. Ele disse estar perdido. Transitando entre um mundo e outro, um dia me viu na rua e me seguiu. Não queria incomodar, apenas saber como eu estava.  

Aposto que a Carol o classificaria como fantasminha camarada. Ainda não sei. Não sou muito dada ao perdão. Dizem que isso poderia libertar a alma dele, mas acho que isso ele deve desenrolar lá com Nosso Senhor. Senti um pouco de pena. Mas já faço muito de não chamar um exorcista. Que vá logo. O tempo urge e a fila do juízo final é grande.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

No forno


O ciúme estava muito líquido, como a massa do bolo. Desconfiou que devesse pôr mais farinha, mas era a primeira vez que fazia aquela receita. Teria que recalibrar tudo: ovos, açúcar, suco de laranja. Se mudar agora, como vai saber como deveria ser o bolo? Fofo é que não deve ser. “Deixa, vou pôr no forno mesmo assim”.



Ele foi esquentando, esquentando, até sair como vapor. Pelos poros. Depois pelos olhos. Tanta pressão a inspirou a cozinhar, ainda que fosse naquela cozinha alheia. Algo suave. Doce. E que ninguém tivesse feito antes.

Era de casa, mas mal sabia onde ficavam as coisas. Sentia falta da própria cozinha, com sua lógica orgânica. Sorvete no freezer, creme de leite na despensa e o caderno de receitas na segunda gaveta da pia.

Isso estava superado. O importante agora era que o bolo finalmente ficasse dourado. Nada mais quieto que um bolo no forno. Adivinha-o borbulhando sob a fina crosta. Ninguém cozinharia para Marcos impunemente. Um dia era uma torta, no seguinte oferecia um bombocado... Decidiu que não haveria para a outra o dia do bem-casado.

Meia hora havia se passado e o bolo continuava branco. Sem cheiro. Voltou ao computador atrás de outra receita. Quem sabe algo mais afrodisíaco. Triste seria jogar toda uma receita fora.

Doce e ácido, o perfume foi se intensificando até penetrar o quarto. Ela ainda esperou mais alguns minutos antes de desligar o forno. Preferiu deixá-lo no calor enquanto preparava a calda. Espremeu o suco de uma laranja e adoçou. Ficaria bem molhadinho. Não havia nascido ainda mulher capaz de roubar um homem pela barriga de uma legítima Teixeira.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dia de estar mais bonita


Segunda-feira, Alessandra desperta como sempre às 5h. Pega da poltrona a roupa já escolhida. A blusinha florida é o anticlímax da produção, cujo ponto forte será a calça que promete levantar o bumbum. Tinha que impressionar, não o chefe, ou os colegas, mas um cliente.

Era um cara que aparecia todos os dias. Pedia pizza portuguesa, coca-cola e um maço de cigarros na saída. Ou um x-tudo e uma sobremesa. A caixinha de Alê era o “obrigado” com sorriso que ele lhe deixava todo dia ao fim do almoço.

No banheiro, os potes de creme aguardavam a chamada. A máscara para cabelos. O esfoliante facial. A maquiagem e o protetor solar. Meia hora depois, a porta abriu-se e libertou a nuvem de vapor. Borrifadas de perfume importado – de terça pra frente um bom nacional daria conta. Por fim, os brincos e a pulseira.

Tudo isso porque era segunda-feira. Fazia dois dias que não o via. Saudade só contida porque tinha prazo. Curto. E por saber que a empresa dele, como aquela padaria, não emendava os feriados. Se sempre caprichava, segunda exigia mais. Sabe lá com quem ele esteve no sábado e domingo.

Ps. Embora eu discorde da explicação, há cientistas que garantem que as pessoas são mais bonitas na segunda. Veja aqui.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Verso e costas


Bento colocou uma placa na entrada do estúdio: “Não tatuo nome de mulher – exceção apenas para nomes de mãe e filhas”. Queria assim se ver livre de publicar a ilusão ou a inocência alheias. Ainda assim, a corrupção o espreitava. Não ligava se a moça estivesse presente. Se fosse bonita ou já estivesse morta. Não, não e não. É preciso um mínimo de ética nesse meio. Até que apareceu um fulano. Não queria nome de mulher. Foi justamente por isso que escolheu o estúdio, explicou. “Põe aí, em letra bonita: ‘Amor, só de mãe’ aqui nas costas”.



Era miúdo, careca e via-se que andara malhando para ganhar corpo. “Amor, só de mãe”... Lamentou não ter pensado naquela exceção. Quando criou a placa tinha acabado de tatuar um manezinho que lhe pedira para escrever “Francilangela” em estilo gótico nas costas. O cara curtia vampiros. Ou era emo. Bento não sabe a diferença. Queria impressionar a namorada que ia ser modelo em São Paulo.  Bento aposta que essa nunca mais voltou à terra. Pra não dizer que mudou de nome também.

Houve um outro cara que ele recusou. Queria tatuar “Eu sou muito foda”. Nas costas, claro. Porra, ele era tatuador, não publicitário. Não fazia anúncio de idiota. Quase mudou de ideia quando pensou que na verdade seria um ato altruísta, quase um serviço público. Seria como uma faixa indicando um caminho alternativo para o motorista: evite cara mala, tente o da esquerda.

Era tatuador, porra. Não terapeuta. Mas pelos negócios não podia deixar alguém sair de lá com aquilo. “Legal, né? Foi o Bento que fez”. Que merda, era só no que conseguia pensar com o sujeito ali. Agora, o cara é um fracassado que não pega ninguém e acha bonito contar pra todo mundo? Vai ver era algum tipo de experiência catártica. Cara, estava mesmo virando terapeuta, pensou.

Ligou o botão do “foda-se” e ia fazer o “Amor só de mãe”. Daí a consciência fez mais peso. “Olha cara, nas costas não faço, falou? Se quiser, vai no braço”. O cara ficou satisfeito, “Entendeu! No frio vai ser só andar com a manga dobrada pra galera ver”. Que mãe mereceria mais a tatuagem do que aquela?
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