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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Pedra


Fama era o objetivo de Marina na vida. Optou pelo jornalismo, caminho, no mínimo, controverso para esse fim. Entrevistaria celebridades, desvendaria escândalos, divulgaria atrocidades contra os direitos dos mais humildes. Seria um combo de Glória Maria com Caco Barcellos. Escreveria livros. E daria muitas entrevistas: Marília Gabriela, Jô, Faustão. Não fosse por um detalhe: ela só sabia falar por escrito.

Marina já tinha concedido entrevistas antes. Sabe, fonte ideal? Já a tinham procurado para falar sobre sua experiência como a única mulher vip na balada gay, sobre sua opinião quanto à proibição de caminhões na marginal Pinheiros e até sobre a queda do avião que não matou a Xuxa. Tudo por e-mail ou MSN.

Falar por escrito? Bem, não pode ser sério – pensa você, leitor. Mas é a absoluta realidade. Veja que o baque aconteceu em uma entrevista de emprego, quando o entrevistador saiu do roteiro estabelecido pela convenção social: nada de perguntar sobre quais seriam suas expectativas na nova empresa, de parecer ter lido seu currículo, ou de lhe contar o que afinal fazia um jornalista na área de culinária corporativa.

Por que você continua no jornalismo? Cite uma matéria de nossa revista que você publicaria em forma de pirâmide. Por que você saiu de seu antepenúltimo emprego? Sócrates: quem, o quê, como, onde e, principalmente, por quê? Você ainda mora com sua mãe?

Marina queria protestar: era permitido sair do combinado apenas em entrevista com políticos pegos em áudio e vídeo cometendo flagrante delito, jamais esse último recurso deveria ser admitido em uma questão tão protocolar quanto uma entrevista de emprego. Será que aquela caneta azul ali no canto superior esquerdo da estante, diante do manual de redação, não seria uma microcâmera?

O olhar dos recrutadores era tranqüilo. Marina suava. Analisou que eles só esperavam que ela lhes desse a senha do capitão Nascimento (pede pra sair!). Resistiu. Mais ou menos. Não conseguiu elaborar a tempo suas respostas. Foi resmungando pelo caminho que aquela entrevista devia ser feita por e-mail. No elevador, ainda sob forte emoção, resolveu denunciar via twitter, mas saiu apenas um clichê: puta falta de sacanagem. Foi sua última entrevista ao vivo.

sábado, 27 de março de 2010

A palavra tem poder

O médico ouviu tudo o que ela tinha a dizer. Pra sermos fiéis aos fatos, ele leu tudo o que ela tinha a dizer. Imagine a cena: ela e o médico trocando bilhetinhos como na escola.

Não tinha voz. Primeiro foi a dor de garganta, depois a voz sumiu aos poucos e há dias que ela só conseguia assobiar, o que não conta porque assobio só passarinho entende.

Que não se preocupasse, aquilo era cada vez mais comum. Sabe, doenças psicossomáticas. Porque olhando, veja bem, não há nada de errado com a sua garganta, nenhuma inflamação e nada de errado nas cordas vocais também.

Mas, doutor, eu preciso voltar a falar - vários pontos de exclamação. 

Não, minha filha. Você precisa falar. Tem algo entalado aí que não vai liberar o resto. Está aqui essa guia para a acupuntura e esta outra para o psicólogo porque eu realmente não vejo nada que eu possa fazer.

Mas você disse que não tinha nada – mais pontos de exclamação.

O médico achou que só faltava ele ter que desenhar. “Tem palavras que ficam entupidas, você não fala e elas não deixam as outras sair. Claro que não consigo ver que palavras são, mas que elas estão aí, estão”. 

Já era o terceiro médico. Nenhum dos outros sabia o que podia ser. E agora essa! Ele queria o quê, que sua garganta viesse com legenda?

Voltou pra casa com as receitas, com a certeza de que sua mudez seria eterna. Palavras entaladas? Era demais. 

Não tinha nada entalado ali. Ela era vazia, completamente vazia e estava bem assim. Não tinha com que se entalar. 

O terapeuta pedia que ela falasse sobre qualquer coisa, sua semana, seus amigos, se gostava da voz. Aquilo não parecia levar a lugar algum. E ela enchia páginas. 

Você não está se esforçando, ele disse. O que quer que esteja aí não vai sair sem você forçar.

Então erraram o diagnóstico, é prisão de ventre! Valia uma nota na Science: “prisão de ventre também trava a língua”. 

Sua garganta inchava mais a cada dia. Que palavras seriam aquelas? Ela simplesmente não sabia. 

Houve uma noite. Esta noite ela só sabe que existiu porque é certo que acordou naquele dia e depois no dia seguinte. Mas do pôr do sol até o amanhecer havia um completo vácuo. Acordou na própria cama, despida, sozinha. Nada de estranho no quarto. Apenas o buraco na mente. Crescendo. 

Poderia ser um “boa noite, Cinderela”. O vestido preto estava jogado na cadeira ao lado da cama, tinha um pé de sandália na sala e outro embaixo do chuveiro. Um beck turbinado. Ou sua mente tentando protegê-la de algo ruim demais. Se fosse isso, por que sua garganta queria sabotar se vinha dando certo até agora? 

Isso hoje, amigo leitor, está sendo investigado, porque a paciente explodiu. E como ela imaginou, deu mesmo na Science, e no Times e na Folha e no Le Monde. As palavras saíram aos montes, estão espalhadas, quase invisíveis, por todo o quarto. O governo designou uma equipe da polícia científica e outra médica para tentar por ordem naquilo. Já dizia sua avó, cuidado com as palavras.
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