Essa crônica foi publicada originalmente no Vida a Sete Chaves, mas resolvi compartilhar com os leitores do Crônicas também. Espero que se gostem!
Hospital público. Sabe como é, né doutor? Demora pra ter vaga.
Cheguei todo arrebentado e fiquei mais de dia na fila. Depois mais um
dia – ou foram dois? – na recepção aguardando minha vez. Estava tão
grogue de dor que agora num sei se foram um ou dois dias. E tinha um
bagulho de senha, tá ligado? Parecendo banco, moderno! Só que
modernidade pra hospital pro povo é só pra dar enrolar, cara. O número
não muda. E quando muda, não muda pro seu. Fiquei lá tanto tempo que até
consegui sentar!
O que eu tinha? Levei um tiro de raspão e caí da moto lá no
Pelourinho. Tinha que entregar umas encomendas lá no Centro. Senti a
bala, desviei, mas ralei os braços, saiu osso pra tudo quanto era lado.
Mas lá no hospital, acharam que não era assim tão grave, não, e foram
passando gente na minha frente. Passando gente, modo de dizer, porque
nem foi tanto povo assim, senão a fila encurtava.
De preto, minha cor original, já tinha parte ficando roxa. Se não era
gangrena, num sei o que foi. A enfermeira fez cara de espanto: Vixie,
meu Senhor do Bonfim, que esse homem tá apodrecendo! Os médicos
acorreram, me jogaram numa maca, levaram lá pra sala de cirurgia e quase
que foi sem anestesia, de tanta pressa deles. Pressa ou doideira? Era
madrugada, os negos vira as noites e embala os dias no plantão, num dá
pra saber. Tem uns que até são meus clientes.
Daí que acordei, três dias depois. Num quarto com outro maluco. Tinha
ainda duas camas vazias, depois dizem que num tem vaga quando a gente
procura. O maluco passava os dias ouvindo Luan Santana. Tocava num
celular de merda, que ele deixava já direto na tomada pra não
descarregar. Olha o que fazem com o nosso dinheiro. “Amar não é
pecaaaaaaaaado/ e seu estiver erraaaaaado”… Aquilo martelava na minha
cabeça até dormindo.
Seis dias eu agüentei, doutor.
Nem pedi silêncio, seu delegado, só pra tocar outra coisa. Que aquilo
tava doendo mais que os pontos, que os remédios, que o estouro da moto.
Ele olhou nos meus olhos e cantou mais alto: “Eu tô
apaixonaaaaaaaaaaado/ Eu tô contando tudo/ E não tô nem ligando pro que
vão dizer… Que se dane o mundo”…
Nessa hora me ferveu o sangue. Parti pra cima dele com a faca de
plástico mesmo. Pode acreditar, doutor. Com a raiva que eu tava, num
precisava de outra coisa. Agora, quero vê quem vai ser o doido de tocar
essas merdas pro meu lado.
Carta do editor - Não é o fim
Há 10 anos
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